Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

Não temos ideia de como chegamos a acreditar no que acreditamos

Os deuses, os valores, os comportamentos e os afetos vão sendo criados ao sabor do acaso histórico das sociedades

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O filósofo britânico A.N. Whitehead (1861-1947) suspeitava de que os avanços numa civilização são processos que podem destruir as civilizações em que eles se instalam.

Estaríamos diante de um efeito colateral indesejável dos avanços nas civilizações?

A verdade é que suspeitas como essas podem ser postas diante da crença ingênua de que, se entendermos racionalmente as coisas —supondo que isso seja compreendê-las nas suas relações causais na realidade—, saberemos como "fazê-las melhor".

25 julho 2022  Título: Não há como remendar o passado   A ilustração de Ricardo Cammarota foi executada manualmente - temporariamente, com a mão esquerda (o ilustrador, que é destro, está com o ombro direito imobilizado) conferindo ao acabamento da ilustração, figurativa, contornos e limite entre as cores tremidos, traços imprecisos e grossos.   A técnica utilizada é guache com pincel, cores predominantes de fundo: vermelho e rosa e rosa pálido. Os traços em preto e as formas em branco.  A ilustração, bem estilizada (sem detalhes), no formato horizontal - da esquerda para a direita - mostra uma figura humana em formato de robô ou máquina de lavar roupa, com a tampa da frente aberta e, dentro do corpo, cabeças humanas com olhos abertos. Em frente, um balde redondo, com alças e rodas, cheio de cabeças.  Adiante, um buraco negro em formato de peça de jogo de quebra-cabeças, com uma cabeça caindo dentro deste buraco. Adiante, do lado direito da arte, dois personagens em posição igual, sentados em cadeiras, frente à frente e um traço pespontado, horizontalmente, na altura do olhar de ambos.  Ao centro da composição, mas não em maior destaque, há um cabeça humana no chão, onde, da testa, sai um arbusto com folhas. Ao fundo da ilustração, há um varal com peças de corpo humano ( braço, peito com camisa e gravata, saia e pernas, cabeça e calça conprida -  todos presos com pregador) no mesmo acabamento de traços tortuosos e alguns pespontados.
Ilustração para coluna de Luiz Felipe Pondé - Ricardo Cammarota

Descobrimos que existem componentes sociais e históricos na identidade sexual —exemplo de avanço no entendimento da realidade— e daí concluímos que sabemos como manipular tais componentes e organizá-los melhor do que estavam organizados até então.

Descobrimos que há furos na fundamentação das crenças religiosas —outro exemplo de avanço no entendimento da realidade— e daí concluímos que destruindo a religião faremos pessoas mais felizes e melhores.

Inventamos a ciência moderna —outro exemplo de avanço no entendimento da realidade— e daí concluímos que cientistas são pessoas mais inteligentes e livres de viés cognitivo como outros mortais.

Mergulhemos mais fundo na história. A filosofia foi inventada na Grécia antiga —grosso modo, a partir do século 5º a.C.—, daí concluímos que esse fato fez bem para Grécia de então e produziu um melhor entendimento da realidade e melhores ações nos gregos a partir de então.

Não parece ser a opinião de Gilbert Murray (1866-1957), historiador da religião e literatura grega antiga. Murray tem um conceito que me parece muito operacional para explicar por que experimentos como a modernidade ou a pós-modernidade não dão tão certo quanto seus adeptos imaginam que dão —ou mesmo eventos como a democracia, o teatro grego e a filosofia não implicaram nenhum grande "avanço" na vida grega antiga. Vejamos.

Na sua obra "Five Stages of Greek Religion" (cinco estágios da religião grega), Murray descreve o processo contínuo e cheio de rupturas da religião grega antiga mostrando que, ao longo dos séculos, a crença foi se desfazendo e refazendo num processo não passível de ser reproduzido racionalmente nem repetido intencionalmente.

Eis o "conglomerado herdado" que caracteriza toda forma de ancestralidade cultural —e por cultural aqui conta-se moral, religião, política, sociedade. O termo nos leva à ideia de tempo geológico para significar que processos de constituição de conglomerados culturais herdados levam milênios para se dar e nunca terminam de se constituir. E mais: ninguém sabe sua chave de funcionamento, porque ela não existe.

Por isso que, quando acreditamos que estamos num processo de destruição de crenças, superstições, preconceitos e obsessões coletivas para reconstruir racionalmente uma cultura, damos com os burros n’água, como a crença moderna no progresso do mundo.

O aluno de Murray, E.R. Dodds (1893-1979) suspeitava que o surgimento da filosofia grega foi um caso como esse. Começando a corroer o conglomerado herdado do ancestral grego —a religião, a moral, os costumes, as crenças, os sonhos—, a filosofia racionalista grega não conseguiu pôr "nada no lugar".

Em momentos de grandiosidade de uma civilização, seus habitantes podem experimentar a desmedida de crer que podem construir conglomerados herdados ao sabor dos seus gostos.

Nesses gostos de hoje estão os delírios de uma espiritualidade de consumo que brinca de remendar o conglomerado antigo-medieval destruído pela experiência moderna.

As sociedades não se constituem a partir de processos de engenharia social. Um conglomerado herdado é uma montanha de camadas que se superpõe em tempo geológico sem que ninguém tenha a capacidade de saber como se deu. Os deuses, os valores, os comportamentos, os afetos vão sendo "criados" ao sabor do acaso histórico das sociedades e em cada época eles parecem ser obviamente coerentes e reais para as pessoas habitantes de cada época.

Não temos a mínima ideia de como chegamos a acreditar no que acreditamos nem valorizar o que valorizamos.

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