Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

Peça 'Espiral' reflete, sem clichês, sobre condição da mulher na modernidade

Fôssemos escrever um manual revolucionário, diríamos que todo militante é estúpido em sua missão reducionista

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Há temas tabus em nossa época. Um deles é dizer que o STF foi um tanto afoito quando criou as bases para uma guerra civil rural no Brasil com relação ao "marco temporal". Outro é todo o campo identitário sagrado. Outro é a emancipação feminina.

A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual com pincel e nanquim aguado.  A imagem horizontal, proporção 17,5cm x 9,5cm, apresenta a figura estilizada de uma mulher antiga, por volta do final do sec XIX, visão do joelho para cima, sentada, com as mãos cruzadas, olhos fechados. Ela tem o cabelo cacheado, veste camisa clara com broche no pescoço e saia longa e escura, com a cintura alta. Ao lado, um pouco atrás, a mesma figura está com chapéu andando de bicicleta. Ao fundo, há uma linha de horizonte deserto e, à esquerda, há uma casa de bonecas com a sombra refletindo à direita, no chão. Do outro lado direito da ilustração, há um grande sol.
Ilustração de Ricardo Cammarota para coluna de Luiz Felipe Pondé de 11 de setembro de 2023 - Folhapress

Claro, todos à esquerda. E por quê? Porque na direita você pode jogar pedra com gosto — é feita de gente lixo— ainda mais depois da anta do Bolsonaro. A esquerda, não, ela carrega sobre si a aura da graça divina política. Todos são puros de coração.

Pois a peça "Espiral", com texto de Ricardo Leitte, direção de Einat Falbel, no elenco, Julia Carrera, Eliane Sombrio e Falbel, tem a coragem de, ao revisitar de forma sutil a sombra da famosa Nora da peça "Uma Casa de Bonecas", do dramaturgo Henrik Ibsen (1828-1906), refletir de forma consistente, e não militante, acerca das consequências da emancipação feminina.

O que aconteceu com as herdeiras da personagem Nora, que, ao final da peça "Uma Casa de Bonecas", rompe com o mundo que a fazia de boneca? A peça estreia no próximo sábado e fica em cartaz até 14 de outubro. As sessões, aos sábados, acontecem às 19h, no Studio Zoe, na rua Croata 210, na Lapa, com lotação de 20 pessoas.

Ibsen é visto como "feminista" por criticar a condição feminina no século 19 europeu e simpatizar com a fuga das mulheres daquela condição. Mas a pergunta é: quais os efeitos colaterais indesejáveis da opção feita por Nora? Como estão as descendentes da Nora?

Disclaimer para os inteligentinhos, que hoje dominam completamente o debate público e jurídico no país: essa reflexão proposta aqui nada tem a ver com defender um "retorno" a condição préNora —o que seria uma ideia idiota—, mas sim propor uma reflexão consistente, e não militante, como faz a peça "Espiral", acerca do "projeto Nora" de Ibsen, vista a partir dos olhos de hoje.

Toda militância é estúpida quando se trata de entendermos o mundo. Fôssemos escrever um novo "manual do revolucionário" hoje, deveríamos acrescentar um novo pré-requisito: o militante deve ser sempre um estúpido para cumprir sua missão. Nossa Nora é médica —você conhece profissão mais chique? Todos os pais e todas as mães sonham com filhos médicos e filhas médicas.

Mora num desses condomínios para "singles" descolados. Sozinha, já passada sua juventude, herda um gato, mora num prédio que tem um assassinato, policiais rondam, sonha —e teme ao mesmo tempo—com o porteiro a visitando de surpresa, pois não perdeu o viço da mulher que deseja um homem que a possua. Perdida, ela bebe vinho demais.

Este é o argumento básico encontrado na peça. Há elementos inspirados no teatro pobre do polonês Jerzy Grotowski (1933-1999). O espaço é íntimo e minimalista, as atrizes circulam "na sua cara", estamos claramente num espaço cênico que visa escapar do formato clássico do teatro burguês em que a segurança é o elemento que sustenta a condição do espectador na plateia.

A Nora de "Espiral" não é uma mera sombra da Nora de Ibsen. Ela vai além. Antes de tudo porque a personagem Nora de Ibsen é um arquétipo da mulher que se liberta da opressão e vive na adolescência da modernidade, no século 19, cheia de mitos sobre o alcance benigno que teriam esses mitos na vida das pessoas.

A Nora de hoje sabe mais do que a Nora de Ibsen. Ibsen não tinha como saber de que forma a modernidade "envelheceria". Viveu no século 19, um século muito orgulhoso de si mesmo. Se olharmos a personagem Nora da peça "Espiral" sob o prisma do "projeto de vida" da Nora de Ibsen, seremos obrigados a dizer que a modernidade envelheceu muito mal.

Hoje, apegada a clichês feministas baratos quando se discute a condição feminina, a modernidade apenas aprofunda a ignorância acerca de tudo. Cobre com a manta da cegueira militante toda a vida à sua volta. E os jovens revolucionários repetem as bobagens que muitos professores e intelectuais ensinam para eles. Enfim, a peça é rica em elementos clássicos muito além de Ibsen.

A Grécia tem um papel de destaque, assim como a caixa de Pandora tem na vida da personagem Nora. Arriscaria dizer que "Espiral" é a tragédia de Nora e de algumas mulheres acima dos 50 dos dias de hoje.

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