Luiz Weber

Secretário de Redação da Sucursal de Brasília, especialista em direito constitucional e mestre em ciência política.

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Você sabe com quem está falando?

STF decidirá se ofensa a servidor público deve ser punida mais severamente; denúncia contra professores de SC vai alimentar debate

Fila... Pega-se a senha. Fila de novo. Senta-se, aguarda-se a convocação pelo monitor. Surge na tela a senha P187. Bom, a partir daí quem tem em mãos o tíquete, digamos, P195 pode estimar um tempo para atendimento. Nunca a informação parece seguir uma ordem lógica. Suspense. Uma repartição pública é um desafio ao reconhecimento de padrões. A sequência segue. J298, Q2, RS569... Uma hora se chega ao guichê.

Ali, o cidadão acomoda-se numa cadeira nitidamente mais baixa daquela usada pelo servidor público. Talvez mero acaso. Ou não. No livro “Ensaio Sobre o Ritual Judiciário”, o professor e magistrado francês Antoine Garapon arrisca a tese de que os espaços públicos de poder são sempre arrumados para “culpabilizar” o cidadão. 

Afixado na parte detrás de PCs antigos, uma mensagem adverte o contribuinte antes mesmo de apresentar sua demanda: “Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa”. Um salvo-conduto para justificar eventual péssimo serviço.

O desacato a servidor é um desses fósseis jurídicos que estão no Código Penal. Estão ali para privilegiar o agente do Estado. Um DNA que vem de longe, das Ordenações Filipinas, código jurídico editado em 1603 e que vigorou por quase 300 anos no Brasil.
  
No seu Livro V, trazia um capítulo apenas para aqueles que diziam “mal del-Rey”. “O que disser mal de seu Rey... ser-lhe-ha dada a pena conforme a qualidade das palavras... A qual pena, se poderá estender até morte inclusive, tendo as palavras taes qualidades, porque a mereça.” Essa proteção ao escrutínio do povo, blindagem contra liberdade de expressão alcançava outros funcionários públicos. E muito dessa herança permanece no Código Penal brasileiro, de 1940. 

O STF vai analisar nos próximos meses duas ações que pedem a inconstitucionalidade de dispositivos do código que tratam de modo assimétrico o cidadão comum e o servidor público.

No caso do desacato, o Conselho Federal da OAB ingressou com uma ADPF (Arguição de descumprimento de preceito fundamental). Caiu com o ministro Luís Roberto Barroso. De acordo com a Ordem, na ADPF 496, “o crime de desacato fere a liberdade de expressão” e que “o princípio republicano pressupõe a igualdade formal entre as pessoas”. 

Citando entendimento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a petição afirma “que o controle exercido pela sociedade, por meio da opinião pública, fomenta a transparência das atividades estatais, incentivando uma atuação mais responsável do servidor público, razão pela qual deve haver uma maior tolerância às manifestações emitidas por indivíduos no exercício deste controle democrático”. 

Outro privilégio corporativo alcançou na semana passada a Lava Jato. No dia 23 de agosto, o Ministério Público Federal denunciou dois professores da Universidade de Santa Catarina por infração ao artigo 141, inciso II do Código Penal, que diz o seguinte: “As penas cominadas neste Capítulo (Crimes contra a Honra) aumentam-se de um terço, se qualquer dos crimes é cometido: II – contra funcionário público, em razão de suas funções.” 

Na denúncia, o procurador do caso pediu a condenação power, aumentada, por injúria, porque o suposto alvo da ação dos professores era uma delegada da Lava Jato.
  
Colegas do reitor que suicidara após ser preso pela PF, ambos permitiram, em cerimônia interna no campus, que fossem expostos cartazes com atribuição de responsabilidade pela morte do colega de universidade à delegada do caso. 

A policial sentiu-se injuriada. Em tempos de redes sociais, haters, a defesa da honra deve permanecer protegida. Mas não cabe ao servidor um privilégio especial. As corporações resistem, por enquanto. 

Em abril passado, o STF resolveu levar a plenário a questão se o crime contra a honra dirigido a funcionário público deve ser punido mais severamente.

Relator da Ação Penal 891, posteriormente convertida numa ADPF, o ministro Marco Aurélio afirmou que o aumento de pena seria inconstitucional por criar uma distinção entre cidadãos comuns e funcionários públicos. Se ofendidos, ambos têm o mesmo direito à proteção. Julgados inconstitucionais, esses dois dispositivos contribuirão para o fim do “sabe com quem está falando?”

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