Manuela Cantuária

Roteirista e escritora, é criadora da série 'As Seguidoras' e trabalha com desenvolvimento de projetos audiovisuais

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Manuela Cantuária
Descrição de chapéu

Se Spotify tivesse algoritmo feminista, eu já estaria cancelada pelo que escuto

Tente explicar para os quadris que a letra desse funk ou daquele piseiro é machista, porque eu me recuso

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Se o algoritmo do Spotify fosse uma mulher, ela já estaria recorrendo a remédios controlados. Imagino a DJ exausta me sacolejando pelos ombros: "mas você não é feminista?". Sim. "Como, se o vocalista da sua banda indie nova-iorquina preferida destruiu a vida da namorada, uma modelo que perdeu todos os seus contratos quando os dois foram pegos com heroína?" Eu sei, é complicado.

Mas poderia ser tão simples: gosto do som dele. Isso não significa que vou jogar minha calcinha no palco quando ele vier em turnê para o Brasil. Ser feminista também é sobre não aceitar as privações que nos foram impostas. E eu não vou renunciar ao prazer de ouvir esse machista no repeat. Se deletá-lo da minha playlist significasse o fim da violência física, sexual, psicológica, patrimonial, social e moral à qual as mulheres são submetidas, eu não pensaria duas vezes.

Colagem representando uma guitarrista com cabeça de cachorro acima de um torso de mulher vestida com um bustiê, que por sua vez está acima de um aparelho de som e uma bunda feminina
Ilustração publicada em 7 de fevereiro - Silvis

Para agravar a confusão mental do meu algoritmo, não me limito a bandinhas alternativas que só três pessoas conhecem. Sou uma profunda apreciadora de ritmos brasileiros como funk, brega, piseiro, sertanejo, pagode —e não estou sozinha nessa. Aprendi a coreografia de "Late, Coração" no TikTok para descobrir que o responsável pelo hit foi preso por violência doméstica. A gente não tem um minuto de paz nem quando quer se expor ao ridículo.

Na caixa de som que a galera do meu lado trouxe para a praia, a letra impositiva de um funk demanda que eu rebole para o "pai". Eu poderia fugir para o mar e me afogar em um redemoinho de problematização. Mas já diria o poeta: eu só quero é ser feliz. É meu dia de folga. Enquanto roteirista, no caso, porque a jornada de trabalho feminista é de 24 horas por dia, sete dias por semana.

Posso não concordar com a letra, mas tente explicar isso para meus quadris.

O piseiro, ritmo das vaquejadas que enlaçou meu coração e de milhões de brasileiros, me apresentou à Taty Vaqueira. Uma mulher de gostos simples —no caso, cachaça—, que, em sua lida bruta para se destacar em um meio dominado por homens, deu um nó na minha cabeça. Quando escuto no máximo volume ela rimar "sou teu animal" com "vem me domar fazendo amor no curral", só o algoritmo do Spotify pode me julgar. Eu me recuso a fazer o mesmo.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.