Manuela Cantuária

Roteirista e escritora, é criadora da série 'As Seguidoras' e trabalha com desenvolvimento de projetos audiovisuais

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Manuela Cantuária
Descrição de chapéu Todas

Como ritual de Ano-Novo, escrevo uma carta para uma amiga minha que já morreu

Segundo ela, a melhor forma de lidar com uma situação constrangedora é torná-la mais constrangedora ainda

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Já faz dez anos que pratico o mesmo ritual de Ano-Novo. Escrevo uma carta para Natália, uma amiga que morreu em 2013.

Nessa última virada, escrevi a décima carta. E depois de tanto escrever para ela, decido escrever um pouco sobre ela. Até porque essa é uma coluna de humor e ainda não conheci pessoa mais engraçada, capaz de fazer piadas nos piores momentos possíveis.

Desenho de um copo de limonada com líquido verde, fundo amarelo e várias rodelas de limão verdes, bolinhas de limão verdes, limões amarelos e cubos de gelo
Ilustração de Silvia Rodrigues - Silvis

Depois de uma operação mal-sucedida para retirar um tumor, ela precisou de uma cadeira de rodas para se locomover. Todo domingo, íamos ao clube. Ela encarava a piscina transbordando de crianças, aliviada: "Pelo menos o inferno não deve ser pior do que isso".

Certa vez, quando fomos até o chuveiro tirar o cloro do corpo, ela se levantou da cadeira, chamando a atenção de um moleque que fazia pirraça logo atrás de nós. Nada se compara à inocência e à crueldade das crianças. O moleque cismou que ela estava fingindo e perguntou por que precisava de uma cadeira de rodas se conseguia andar. Natália respondeu que ficou assim porque fazia perguntinhas demais quando era da idade dele.

Segundo ela, a melhor forma de lidar com uma situação constrangedora é torná-la mais constrangedora ainda. A maioria das pessoas não sabia lidar com sua doença e ela se tornou um ímã de gafes. Fez desses limões não apenas limonada, como deliciosas tortas de climão.

Natália era curta e grossa, mas seu sarcasmo não tinha nada a ver com insensibilidade. Lembro uma noite em que sofri uma desilusão amorosa. Natália, até então, também torcia por aquele cara.

Nossas amigas tentaram me consolar dizendo coisas como: "Que babaca, ele não te merece" etc. Mas Natália brindou comigo dizendo: "Erramos". Foi a melhor coisa que alguém poderia ter me dito. Ela me libertou, em uma palavra, da condição de vítima. De fato, era eu quem tinha ignorado os sinais, por medo de ficar sozinha. Errei. E não estava sozinha. Erramos.

Até hoje, quando me sinto como me senti naquela noite, brindo com ela. Erramos. Natália me ensinou a rir do erro, do constrangimento, da dor, dos finais terríveis. Antes um final terrível do que um terror sem fim.

Pouco depois de sua partida, alguns desavisados me pediam notícias dela, e eu respondia: "Ela está ótima, mas morreu, infelizmente". Em algum lugar, sei que ela acha graça. Seu dom de sempre achar graça continua vivo, felizmente.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.