Manuela Cantuária

Roteirista e escritora, é criadora da série 'As Seguidoras' e trabalha com desenvolvimento de projetos audiovisuais

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Manuela Cantuária
Descrição de chapéu Todas

Me engana que eu gosto

Para ser bom, às vezes é preciso ser um pouco amoral

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Nunca me esqueci da noite chuvosa em que fomos abordados na rua, eu e um amigo, por um homem de aparência cansada e expressão aflita. Sua filha estava internada em um hospital próximo. Ele nos mostrou uma foto da menina que carregava na carteira —a cara do pai, os mesmos olhos espremidos represando o pretume da íris. Precisava de dinheiro para o tratamento da criança. Comovida, dei a ele tudo o que tinha —na época ainda era comum andar com dinheiro em espécie, como faziam os astecas.

Assim que ficamos a sós, eis que meu amigo comenta que via aquele mesmo homem, havia anos, nos arredores do hospital, contando a mesma história da filha internada e pedindo dinheiro. Minha reação imediata foi confrontá-lo. Por que não havia me avisado?

Desmascarar o golpista diretamente causaria, sem dúvidas, um clima mais carregado do que o céu que desabava sobre as nossas cabeças. Mas custava uma cutucada, um olhar enviesado, qualquer sinal que fosse?

Ele apenas deu de ombros e disse: "É o trabalho do cara". Não me dei por satisfeita: "Ele mentiu para mim, me deu um golpe". O que meu amigo me diria, a seguir, foi o motivo pelo qual nunca me esqueci daquela noite: "E o seu golpe é escrever roteiros. Qual é o problema?".

Vale pontuar que, na época, esse amigo morava em um templo budista, onde era voluntário, e trabalhava como enfermeiro domiciliar de pacientes em estágio terminal. Todos que o conhecem sempre se referiram a ele como uma pessoa boa.

ilustração de uma tempestade, com texturas de nuvens negras, raios e chuva.
Ilustração de Silvis para coluna de Manuela Cantuária de 27 de maio de 2024 - Silvis/Folhapress

Foi ali que me dei conta de que, para ser bom, às vezes é preciso ser um pouco amoral. Não preciso desperdiçar caracteres para exemplificar quantas atrocidades foram cometidas ao longo da história em nome da moral, certo?

Lembrar aquele homem sempre me comove —por motivos, agora, diferentes. Debaixo de sol e de chuva, noite adentro, contando a mesma história, atuando com a entrega de uma Fernanda Montenegro, voltando para os braços da filha.

Penso nos meus amigos escritores, humoristas, poetas, cineastas, publicitários, comerciantes, contando histórias para sobreviver —como Sherazade, que, condenada à morte, conta uma história por mil e uma noites para adiar a execução de sua pena.

(Ao leitor que deve estar pensando que acho bonito ser enganada: não somos tão diferentes assim. Me dedico, toda semana, a mentir para que você sinta a mesma coisa.)

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