Mara Gama

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Como vai a reciclagem no Brasil?

Medidas do governo abrem espaço para a chegada de incineradoras de resíduos no país, diz especialista

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No último dia 30 de abril, duas medidas importantes na área dos resíduos sólidos foram publicadas no Diário Oficial da União. Uma delas foi o Programa Nacional Lixão Zero, iniciativa do Ministério do Meio Ambiente, através da portaria nº 307. A outra é uma portaria que disciplina a recuperação energética dos resíduos sólidos urbanos, de nº 274, que foi assinada pelos ministros do Meio Ambiente, Minas e Energia e de Desenvolvimento Regional.

Dando sequência à serie iniciada em 17 de maio, dia Internacional da Reciclagem, esta coluna entrevista a socióloga Elisabeth Grimberg, coordenadora da área de Resíduos Sólidos do Instituto Pólis, membro da Aliança Resíduo Zero Brasil, para falar sobre o estágio da reciclagem no país e comentar os possíveis impactos das medidas recentes.

Leia, abaixo, trechos da entrevista.


O que comemorar e o que lamentar sobre o estágio da reciclagem no país?
A não comemorar são essas últimas medidas tomadas pelo governo. O programa Lixão Zero, porque não indica estratégias para a retirada digna e integrada das famílias de catadores que moram nos lixões. E ele é combinado com a portaria da recuperação energética – que é a destruição e a queima de materiais. A portaria foi feita para dar alternativa do que fazer como os resíduos que vão para os lixões. Foi uma estratégia combinada, o que revela que se está abrindo a porta para a chegada dos incineradores no país. Isso envolve muito dinheiro, são recursos muito altos, que podem endividar as prefeituras por mais de 20 anos, com dívidas de pagamento desses equipamentos, porque, ainda que sejam investimentos privados, quem vai pagar o investimento inicial e os custos de operação não são as empresas. Elas vão arcar com os riscos de investimento. Mas quem tem de pagar e reembolsar esse investimento é o setor público municipal.

Nós estamos vivendo um retrocesso, indo em direção a um sistema de gestão de resíduos extremamente perigoso e nocivo. Os filtros de incineradores e das cimenteiras filtram gases contaminantes numa determinada quantidade, mas não se pode esquecer que estes gases são biocumulativos. Eles não saem do planeta. Eles se acumulam. E os problemas de saúde pública e da poluição são grandes, da contaminação do meio ambiente, problemas com dioxinas e furanos que causam doenças mutagênicas, principalmente nas vizinhanças de quem mora perto dos incineradores. Portanto, a perspectiva é de uma destruição de empregos e de materiais.

Mas temos também boas notícias: continuam as iniciativas da sociedade civil de implantar a compostagem, com exemplos como a da rede de escolas de Ubatuba (SP), a lei da compostagem em Florianópolis (SC) e a atuação de empresas privadas em São Paulo e do Rio Grande do Sul promovendo biodigestão.

Os índices da reciclagem no país seguem muito baixos. Por quê?
Há uma cultura bastante cristalizada no Brasil de tratar resíduos sólidos com potencial de reaproveitamento, como os recicláveis e a matéria orgânica, como lixo. Historicamente quem cuida dos resíduos nas prefeituras não dialoga com o setor do meio ambiente. Tive oportunidade de verificar isso quando trabalhamos com 13 municípios, no programa Litoral Sustentável que o Polis desenvolveu entre 2011 e 2016. Nessa experiência, encontramos vários secretários que tinham clareza que a Política Nacional exige que se colete os resíduos em três tipos - recicláveis, orgânicos e rejeitos- e que cada um tenha uma rota tecnológica distinta, e que se deve avançar nesse sistema para desviar de lixões e aterros sanitários, e que podem ser aterros sanitários compartilhados e consorciados. Mas falta capacitação nos municípios para esse entendimento que é possível fazer a transição e usar o orçamento público para a coleta do orgânico separado. E falta também que as associações que articulam politicamente as representações municipais, como as associações de prefeitos e outras entidades, subsidiem os municípios de informações sobre compostagem em escala e consórcios para construir aterros. Essas associações poderiam também pressionar o governo federal e o ministério público para que estes exigissem do setor produtivo que cumpra com a sua responsabilidade de custear a coleta seletiva e a remuneração das cooperativas na classificação dos materiais recicláveis.

O que o setor produtivo deveria fazer?
As empresas, através da Coalizão pela reciclagem, que foi interlocutora com o governo federal no Acordo Setorial das Embalagens, desenvolvem estratégias que trazem alguns recursos e benefícios para as cooperativas de catadores, mas não assumem o custeio da coleta seletiva de porta a porta e de sistemas complementares de contêineres.

Elas resistem a assumir sua responsabilidade estendida, coisa que fazem na Europa. Esse é um elemento muito estruturante do não avanço para um novo paradigma da gestão de resíduos no Brasil. O governo municipal não assume a coleta e tratamento dos orgânicos, que é sua atribuição, e as empresas e os setor produtivo não assumem a logística reversa, que é o nome no Brasil da responsabilidade estendida. As empresas fazem em outros países e teriam condições de construir esse sistema de gestão e isso traria know how dessa gerência, o que poderia ajudar a trazer as empresas nacionais de pequeno e médio porte para dentro dessa lógica de gestão dos recicláveis.

Mas existem muitos interesses. Os empresários, especialmente a indústria dos plásticos e os produtores que usam plásticos para envasar os seus produtos, estão apostando na chegada dos incineradores, porque isso vai retirar deles toda a responsabilidade sobre os resíduos. Por que quem vai pagar pelos incineradores? São as prefeituras. E o que tem teor de combustão? É o plástico. Os plásticos são muito mais complexos, se paga pouco por eles, a separação é custosa. Então, queimar é uma forma de transferir o ônus da gestão dos resíduos, principalmente dos plásticos, para o poder público municipal e para a sociedade, porque é a sociedade que contribui para a formação do fundo público que vai pagar os incineradores.

Como a reciclagem poderia avançar no país?
A sociedade civil organizada -e as mídias precisam entrar mais para nos ajudar- , precisa mostrar para a população a complexidade que é a gestão de resíduos. É importante ter informação, pesquisa de opinião. Não é claro para as pessoas, por exemplo, que a lei brasileira institui que apenas o rejeito deve ir para os aterros. E que ao mesmo tempo deixou uma porta aberta para os incineradores.

Estamos articulados com uma rede internacional que está crescendo, que é a rede Gaia, a Aliança Global Alternativa à Incineração, com a rede Break Free From Plastic, o Greenpeace e outras redes, para mobilizar as pessoas sobre a questão dos plásticos nos oceanos. Chamar as empresas que usam plásticos em grande escala, como Coca Cola, Nestlé, Unilever, e que não estão fazendo sua parte na Ásia, na África e na América Latina e fazem apenas na Europa.

Mostrar a importância de se mudar o padrão de produção, de se mudar o padrão de envasamento, de escolha de materiais para serem usados como envases para os produtos que precisamos. Há uma urgência na questão do clima, do problema da emissão de metano pelos aterros sanitários. Essa movimentação é de olhar o planeta como um recurso que pode se esgotar, se desequilibrar de tal maneira que as novas gerações podem não ter condições para a produção social da vida.

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