Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho

Campeonato dos enguiços cotidianos

Apesar dos aperfeiçoamentos técnicos, alguns aparelhos insistem em não funcionar

 

Ilustração
André Stefanini/Folhapress

A tecnologia, como sempre, avança —​e acredito que estarei ainda vivo quando ninguém mais tiver necessidade de carregadores, fios e tomadas. Confio nas possibilidades da energia solar; também espero que a humanidade em pouco tempo se livre do petróleo.

Será bom quando só viermos a depender daqueles países produtores para o consumo de tâmaras e tapetes.

Com todo meu otimismo, algumas coisas me deixam inconformado. O progresso parece difícil em algumas áreas em que, a rigor, não deveria haver tanto desafio técnico.

O campeão de enguiços, no meu cotidiano, é sem dúvida a porta da garagem. Não sei se se é por excesso de uso no condomínio, mas não há coisa que fique quebrada com mais frequência.

É o atraso construído em ferro; embora acionado por um aparelhinho ultrassônico, pertence claramente à Idade Média, porta levadiça a carecer apenas do fosso para fazer de cada prédio um castelo sitiado. As guaritas, de todo modo, são como as ameias de uma fortificação histórica. Mas pelo menos não quebram.

Comigo, ou é o aparelhinho —que ficou sem pilha, que eu perdi em algum lugar, que travou, que teve seu código "desconfigurado"— ou é a porta propriamente dita, a depender de uma polia enferrujada, que com toda evidência não passou das primeiras aulas de física no colegial.

Impõe-se então chamar o castelão do edifício; por razões de segurança, o homem da guarita não possui o abridor da garagem. Quanto ao zelador, foi para o décimo andar, onde resolve algum problema com as lâmpadas dicroicas da suíte.

Chego à segunda conta desse rosário tecnológico a que temos de prestar reverência. Antigamente, as lâmpadas queimavam (muito), mas pelo menos não havia segredo especial na tarefa de trocá-las.

Hoje, há lâmpadas de todos os tipos, lindinhas, mas que dão medo no morador comum. Disseram-me que algumas são capazes de carbonizar o dedo de quem chegue perto. Há as que queimam explodindo, ou pelo menos com barulho e uma fumacinha depois.

Pelo que sei, trazem junto um transformador, uma resistência, um amperímetro ou coisa que o valha, e ai de você se trocar a lâmpada sem mexer nisso também. Fico às escuras, enquanto o zelador resolve o problema da porta automática para o condômino do décimo andar.

Um terceiro ponto de atraso visível, perto que o circunda, é o funcionamento das impressoras. Mas aí já estou conseguindo resolver sozinho, quase tudo. Você manda imprimir, nada acontece, embora os fios estejam no lugar certo. Já sei: por algum motivo, o seu texto foi enviado para o OneNote, e não para a impressora.

Mas o que é o OneNote? Pior: qual a impressora? Aquela antiga você já doou para uma instituição de caridade. A nova, seu computador não reconhece. Ou está sem tinta também, e o computador não avisa.

Entre a pré-história e a inteligência artificial, adoto métodos híbridos. Abro aquela porcaria de qualquer jeito e troco os cartuchos sem saber se estão cheios ou não. Procuro também o software de instalação no portal do fabricante.

Dá certo, sem que eu saiba como nem se da próxima vez dará. A geringonça pisca, resfolega, avança, produz um papel de teste que ignoro, e depois estaciona novamente. Papel atolado; meu lado neandertal arranca-o, com garras e dentes. O processo é retomado, e avança.

Em compensação, há coisas que não quebram mais, ou quebram raramente. Os carros se comportam melhor hoje em dia. Não precisamos mais desenrolar as fitas cassete que embarafustavam pelas entranhas do gravadorzinho.

A televisão deixou de dar grandes dores de cabeça —exceto quanto a Netflix ou coisa parecida não entende a senha que você esqueceu.

Mas me lembro bem do Homem que Consertava a Televisão, abrindo diante dos meus olhos fascinados a grande muralha da cidadezinha iluminada e futurista guardada na caixa do televisor.

As válvulas de todos os tamanhos pareciam prontas para abrigar uma população minúscula, ordeira e limpa, talvez afugentada pelo misterioso vírus que tinha tomado conta do sistema. Era lindo --mas o Homem que Consertava a Televisão muitas vezes ia embora sem resolver coisa nenhuma.

Hoje, é a máquina de lavar, acho, o caso sem remédio. Em geral, tudo que faz barulho quebra mais. Ninguém mais conserta fogões, que eu saiba. O computador passa, o micro-ondas é um milagre de resistência, a geladeira até que vai, e eu mesmo, bom, me seguro como posso, fazendo o menor ruído possível.

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