Cristovão Tezza

Ficcionista e crítico literário, autor de “O Filho Eterno” e “A Tirania do Amor”.

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Cristovão Tezza

Alternativos e iluministas

Emmanuel Carrère é dessas descobertas que fazem a felicidade inesperada do leitor

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Ilustração
- Vânia Medeiros/Folhapress

"Nada mais devastador do que o desprezo pela realidade imediata demonstrado pelas pessoas que nunca param de matutar sobre a realidade derradeira. A ilusão de ir até o fundo das coisas os desvia da superfície; eles ignoram a matéria do mundo, sua suavidade e sua resistência."

A citação é de Emmanuel Carrère, escritor francês, referindo-se a Philip K. Dick (1928-1982), de quem escreveu a biografia que acabo de ler: "Eu Estou Vivo e Vocês Estão Mortos" (editora Aleph; tradução de Daniel Lühmann).

Por partes: Carrère é dessas descobertas que fazem a felicidade inesperada do leitor. A indicação de um amigo me levou a "Limonov", biografia de Eduard Limonov, poeta que é uma síntese alucinada da Rússia no final do século 20.

Impactado pelo autor e pelo livro, fui adiante, lendo "O Reino", biografia laica de Jesus Cristo, que é também uma historiografia rigorosa e fascinante dos inícios do cristianismo.

O que me chamou especialmente a atenção é que a literatura de Carrère abala uma das teorias que costumo inventar para uso próprio: a distinção entre ficção e não ficção a partir do conceito de "pressuposição de verdade".

Isto é, o biógrafo, o ensaísta, o jornalista, o cientista trabalham todos com esta pressuposição inegociável: o que eles dizem é um esforço sincero de se chegar à verdade factual. Exemplos: Elvis morreu em 1977, o bacilo de Koch é agente da tuberculose e Temer é, tecnicamente, o presidente do Brasil.

O que decide a "não ficção" não é o fato de a afirmação ser verdadeira ou não, mas a intencionalidade do autor: ele quer dizer a verdade, e o leitor sabe disso.

Bem, tal pressuposição não existe na ficção. O escritor pode trabalhar com fatos reais (e a maioria dos ficcionistas faz isso), mas não é deles que se extrai o sentido da obra. A intenção tem outro foco, que é difuso.

Pois bem, nos livros de Carrère transparece nítida uma "pressuposição de verdade", uma intencionalidade biográfica, mas temperada por uma linguagem ficcional que lhe dá liberdade para acompanhar a vida de seus personagens de dentro para fora. É uma espécie de imaginação ensaística, que entretanto não se relativiza num "vale tudo".

Claro, não há novidade em vidas reais romanceadas; o cinema e a literatura fazem isso o tempo todo. A diferença em Carrère está no toque ensaístico, na compulsão reflexiva e, o principal, em ele mesmo se colocar no texto como narrador interessado. Em vários momentos, sentimos a sombra da autoficção, mas o seu apurado ouvido ficcional estará sempre a serviço do ensaio.

O curioso é que a própria fronteira entre ficção e não ficção, na vida real (um dos temas que atormentam a literatura de Carrère), é o centro temático de Philip K. Dick.

Se o leitor, como eu, é pouco afeito ao gênero da ficção científica, para saber de sua importância na área basta dizer que o filme "Blade Runner" se baseia em sua obra.

O historiador Eric Hobsbawm lembrava (em "A Era dos Extremos") que a geração mais bem tratada da história, criada na prosperidade do pós-guerra, foi a mesma que chutou o pau da barraca nos anos 1960 para destruir os fundamentos da mesma sociedade que a educara. Philip K. Dick foi um dos heróis cultuados desta geração; o que Carrère demonstra é que ele foi antes uma vítima do tempo que um dos seus faróis.

O "espírito do tempo" dos anos 1950 apostava na redenção irracional, sob a ideia (vaga, mas obsessiva) de que há uma outra realidade, paralela à nossa. Esta teoria conspiratória global encaixava-se perfeitamente tanto na alma política da Guerra Fria, com o apocalipse atômico a um palmo do nariz e o império da espionagem, quanto na explosão da religiosidade alternativa.

A ideia de que, induzidos por substâncias químicas, descobriríamos nossa "verdadeira realidade" foi endossada por intelectuais da estatura de Aldous Huxley e seguida por milhões de "bichos-grilos".

O leque alternativo ia desde o hippie inofensivo cultivando cenouras comunitárias sob uma névoa de maconha até psicóticos messiânicos liderando seitas homicidas. Deu no que deu: não a sonhada utopia alternativa, mas uma rede universal de tráfico de drogas.

O surpreendente, em Philip K. Dick, é que, na maior parte de sua vida, devastado por comprimidos e por surtos psicóticos, ele não via a sua obra como ficção, mas como a "realidade derradeira". Sob o espírito do tempo, a velha razão iluminista entregava os pontos em definitivo.

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