Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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O abuso dos sexagenários sem-vergonha

Quanto mais vivo, mais me convenço de que o idoso não passa de um grande chato

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Tornei-me um sexagenário recentemente, e —apesar de algumas brincadeiras e autoironias— não me importei muito em garantir meus direitos como idoso.

Nas filas, nos estacionamentos, no cinema e no transporte público, há vantagens a obter. Novato na condição, fico mais como espectador (não direi vítima) do privilégio alheio. E me irrito bastante.

Mulheres sacudidas, atléticas, de cabelo curtinho, usando tênis, moletom e fones de ouvido, interpelam o bilheteiro do cinema. Querem passar na frente de todo mundo. "Não tem fila para idoso?"

Agarro-me à minha recém-perdida juventude (epa!): essa bacanuda está passando na minha frente... Lembro então dos meus direitos. Resolvi aderir, em voz bastante audível, à justa reivindicação.

"Isso mesmo! Aqui tem idoso!" Acrescentei uma tosse teatral. Não pretendia, obviamente, passar na frente de ninguém. Mas a sessentona (terá mesmo essa idade?) avançou, muito lampeira, na direção da porta.

Eu poderia ter acrescentado: "Idoso, e cardíaco!". Fiz um stent de coronária (ou será de outra coisa? Não lembro) há uns dez anos. O médico disse que eu poderia levar uma vida normal.

Ilustração
André Stefanini/Folhapress

Normal? Cinema, teatro, banco? Como assim? Mal posso me locomover sem acompanhante especializado. Arrancam-me o cobertor xadrez do colo, calçam-me o tênis Rainha sem cadarço azul marinho, guarnecem minha calva de um boné de lã e gritam, no meu ouvido direito, que se eu não me apressar perderemos a sessão das 16h15.

Claro que eu preferiria tomar sossegado meu chá de boldo, ouvindo antigas gravações de Glenn Miller e Perry Como. Mas o médico havia dito "vida normal" —e havia mais de mandatório do que de permissivo em sua declaração.

Rrrunf, rrunf. Não se dignando a falar com a mulher do caixa, uma senhora de cabelo roxo outro dia me atropelou na fila do supermercado. Estava carregando, se bem me lembro, um enorme pote de suplemento proteico para musculação. Achei melhor não criar caso.

Ah, que saudade dos velhos tempos! O idoso de hoje é agressivo, consumista, arrogante. Vi um homem de bermuda e óculos escuros avançar seu conversível (eis uma palavra do meu tempo) em cima dos manobristas do "valet parking".

Enfiou seu carro na primeira vaga que encontrou. Recusava-se a pagar o preço mais alto daquela área de estacionamento. O manobrista se intimidava, naturalmente.

"Não tem mais vaga para idoso!", rosnava o playboy, sobrepondo sua voz à da Elis Regina que se despejava do seu toca-CD. Tinha o direito, portanto, de entrar no "valet parking". Pela primeira vez, senti vontade de defender o privilégio dos endinheirados contra aquele falso oprimido.

Nos aeroportos, onde o forte não é a generosidade com ninguém, filas especiais são reservadas para quem tem mais de 85 anos. Até aí, tudo bem. Mas o "idoso" de 60 começa a bufar, como se alguém de 35 ou 17 pudesse resistir melhor ao atraso e ao aperto do avião.

De resto, a fila do idoso quase nunca é uma vantagem. Se algum idoso real estiver na sua frente, irá se confundir com a senha do cartão, terá problemas com o troco, estará enganado quanto à marca do produto e irá pedir "ao menino" para buscar a certa na prateleira. Fará perguntas ociosas e não ouvirá as respostas. Atrás dele, você perderá mais minutos de vida do que se tiver entrado numa fila normal.

Acredito que, no futuro —mas aí já não estarei aqui para testemunhar— as coisas serão mais precisas.

Por meio de um exame instantâneo de pupila, o leão de chácara do show de rock verificará se meus níveis de colesterol e triglicérides permitem algum privilégio. Quem sabe um suquinho. Mas aí talvez me proíbam o consumo de tequila.

E se, como resultado desse teste, descobrirem que devo fazer mais exercício? O certo, então, seria jogar o idoso para o final da fila, em vez de garantir que se acomode antes dos demais.

Terei direito a desconto quando for comprar Viagra? Mas aí talvez entremos num paradoxo. O octogenário animadão, em tese, não deveria ser objeto de paternalismo, e sim de inveja. O justo seria que pagasse mais pela saúde de que desfruta.

Por último, e em resumo: o idoso típico não passa de um chato. Resmunga, proíbe, dá bronca e xinga, achando que não será punido por isso.

Donde a minha proposta, na qual se inclui, quem sabe, a solução para o nó da Previdência.

Que se institua um imposto sobre a velhice. A partir daí, o idoso poderá ganhar seus privilégios em filas com mais méritos —e poderá reclamar com bons motivos.

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