Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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A hora e a vez do 'machismo cultural'

A direita reclama dos 'marxistas culturais', mas sofre com seus próprios complexos

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Claro que não é para prender qualquer pessoa que faça uma piada sobre gays. Mas num país em que homossexuais e transgêneros são assassinados ou agredidos rotineiramente, em boa hora o Supremo Tribunal Federal decidiu criminalizar a homofobia.

Em boa hora mesmo: com um presidente da República declarando que seria melhor um filho morto em acidente do que gay, e com um Congresso que arquiva projetos de lei para reprimir preconceitos sexuais desde 2001, o Judiciário agiu corretamente.

Não é de espantar que casos de intolerância (tanto contra gays como contra negros e outros grupos) tenham crescido no estado de São Paulo durante as eleições presidenciais. É o bolsonarismo triunfante.
Agressões e assassinatos são intoleráveis, dirá até uma boa parcela dos homofóbicos. Já faz algum tempo, contudo, que noto sinais de outro fenômeno, menos descarado.

Ilustração
André Stefanini

Tem a ver com homofobia, com antifeminismo e com o machismo de modo geral e se manifesta cada vez mais claramente em alguns ambientes intelectuais e jornalísticos.

É a vontade de ser “durão”. Funciona assim. O sujeito tem boa formação em ciências humanas, aprendeu um bocado de filosofia, viajou para a Europa, fala francês e, na juventude, arriscou seus poeminhas.
Passam-se os anos, e levo um susto. O velho conhecido resolve ser a favor do porte de armas. Cansou de ser bonzinho. Se chegar um bandido na minha frente, diz ele, não hesito em passar fogo.

Ele era admirador de Simone Weil, de Levinas e de Marcuse. Hoje cita algum “pai fundador” da Constituição americana ou líder republicano; terá argumentos a favor de Guantánamo e da tortura.

Se for de esquerda, invocará o sagrado direito das massas à rebelião armada. Decepcionou-se com o PT e com a via da conciliação. Agora, pensa, é hora de partir para a porrada.

A violência revolucionária, entre proezas e reviravoltas dialéticas, passa a ser “degustada” entre as opções possíveis, como se estivéssemos visitando uma vinícola no vale do Rhône.

Mas é a direita, sem dúvida, quem aposta no que só posso entender como puro machismo intelectual.
Essa coisa de proteger urso polar e outros bichos fofinhos —não há dúvida: é coisa de gay. Dizer que índios têm direito à demarcação de terras —sonho de antropólogas que desconhecem maquiagem e depilação.

O homem de verdade —assim vai o pensamento de direita— “sabe” que a vida real não tem dessas frescuras. Aquelas terras têm minério. Ferro do bom. E, se não tiverem, produzirão carne para meu churrasco.

Ou vai dizer que você é vegetariano? Que tem peninha dos boizinhos? O machismo cultural considera que também isso é coisa de veado.

Mendigos, ciclistas, pedestres, mulheres: a sorte dos oprimidos não é para ser levada a sério. Precisamente, nosso pequeno Trump tupiniquim está do lado dos fortes.

O “mundo verdadeiro”, para o machista cultural, não admite sentimentalismo. Se for para o Brasil ter uma bomba atômica, isso é uma demanda incontornável e realista, num mundo em que vencerá quem fala mais grosso.

Naturalmente, para ele não faz parte do “mundo verdadeiro” nem das “demandas realistas” a necessidade de educação gratuita, da aposentadoria para os miseráveis, das creches, do aborto.

Isso tudo é conversa, diz o machista cultural. Conversa de mulherzinha e de intelectual de esquerda —as coisas se equivalem.

Minha desconfiança é que, em muitos casos, esse tipo de macheza esconde certa insegurança quanto à própria sexualidade. Falo isso com conhecimento de causa; não estou dizendo que sempre fui o mais resolvido de todos nessa área.

A coisa funciona mais ou menos assim. Você é um cara inteligente, sempre tirou boas notas, tem uma queda pelas ciências humanas. Seu pai preferia que você fosse médico ou engenheiro.O mundo dos livros, da literatura, do pensamento, talvez da religião e da psicologia, mostrou-se contudo atraente para você.

Nesse campo em que impera a subjetividade, você ficou nostálgico dos fatos duros e puros. Você gostaria de ter coisas mais definidas —o seu bíceps, o seu abdome, o seu pensamento, o seu desejo sexual.

Cada um faz o que pode; o pavor à ambiguidade se torna elogio da intolerância, a dúvida existencial se agarra à coronha de um revólver, os parágrafos sinuosos da filosofia se organizam de repente numa planilha de orçamento, sua velha barraca de acampamento em Barra do Una se transforma em condomínio na Riviera.

Você virou “adulto”. Mais do que isso: ficou macho. Parabéns.

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