Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Nas tirinhas do cartunista Quino, o futuro existe somente para os idiotas

Mafalda conversa com o globo e nota que tudo vai mal; da sua tristeza com o atual estado de coisas vem sua 'intemporalidade'

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Pego o livro "Toda Mafalda", uma edição encadernada da Martins Fontes, e me espanto. É menor do que eu imaginava —muito menos tirinhas, certamente, do que seus equivalentes americanos, Calvin e Charlie Brown.

Morto na semana passada, o cartunista Quino desenhou as historinhas de Mafalda por menos de dez anos. Parou em 1973 —quase há meio século, portanto. Mas a menina cabeludíssima, feiosa e angustiada continua tão presente em suvenires, camisetas e bonequinhas (para não falar das próprias tiras), que eu não tinha me dado conta de seu prolongado silêncio.

Virou, naturalmente, um símbolo internacional, uma espécie de ONU em forma de criança, e não há quem não goste dela. Pessoalmente, ainda prefiro Charlie Brown, e acho que Mafalda sem querer obscureceu outras coisas feitas por Quino (há cartuns dele geniais). O sucesso da tirinha se deve não apenas a seus momentos de grande inspiração, mas também a uma "mensagem" pacifista, bem-intencionada e um tanto indefinida.

Não consigo ver em Mafalda uma "rebelde", uma "contestatária", como em geral se diz. Ela quer a paz no mundo, é contra a censura e a repressão.

Na imagem clássica, Mafalda conversa com o globo terrestre, notando que tudo vai mal, que nada dá certo entre as nações. É mais tristeza do que revolta diante do "atual estado de coisas". Daí, com certeza, sua "atualidade", ou, melhor, sua "intemporalidade". Nada muda, Mafalda também não.

Ilustração de André Stefanini para coluna de Marcelo Coelho de 7.out.2020.
André Stefanini

Nesse tipo de crítica generalizante, Mafalda está sem dúvida a um passo da banalidade. Mas quase sempre as tirinhas de Quino fogem disso, mantendo uma reserva de surpresas.

Há, naturalmente, os lances puramente poéticos, em que Mafalda se esquece um pouco do mundo e transfere sua melancolia para mais longe. De noite, olhando para a lua, ela cisma: "Coitada! Imagine ser apenas o capacho de entrada do universo!".

Sua maior originalidade, contudo, vem de uma característica mais simples e, quem sabe, tipicamente argentina.

Sendo criança, Mafalda é muito adulta, preocupada com as desgraças que lê no jornal. Experimenta desconforto não só com o presente, mas também com o futuro. O que ela apresenta de forma "inocente", como uma pergunta, é na verdade uma expressão de desesperança. Com a mãe, mais do que com qualquer outro personagem, Mafalda é cruel. Encontra-a passando roupa, descabelada, cuidando da casa, e pergunta: "Mãe, a capacidade de vencer ou fracassar na vida também é hereditária?".

A falta de perspectivas também assombra Filipe, o dentuço que é meu personagem favorito. Bom aluno, sente-se esmagado pela vida escolar. A professora lhe manda um bilhete: "Filipe: alunos dedicados como você têm pela frente toda uma vida dedicada ao dever e ao estudo. Continue assim!". Ele comenta: "Foi a pior alegria que alguém já me deu".

São os coleguinhas mais idiotas, Manolito e Susanita, os que alimentam planos de felicidade pessoal, no comércio ou no casamento. Vivendo na Guerra Fria, Mafalda não acredita muito que vá sobreviver. "Como será o ano que vem?", pergunta Susanita. "Muito valente. Do jeito que estão as coisas é preciso ter muita coragem para chegar."

O tema aparece muitas vezes. Na praia, ela estranha o andar de um caranguejo. Por que ele parece caminhar para trás? "Será que o futuro é tão ruim que estamos voltando?"

Mafalda pergunta à mãe se elas estão levando uma vida decente. "Claro", responde a mãe. "E estamos levando para onde?", pergunta ela.

São perguntas universais, claro. Mas a sensação de um futuro bloqueado —que atualmente sinto com relação ao Brasil— é certamente profunda entre os argentinos. Ao contrário de nós, eles tiveram uma autêntica "idade de ouro". O PIB per capita da Argentina em 1914 era maior do que o da França e da Alemanha.

Já na década de 1930, o sentimento expresso na maioria dos tangos era de nostalgia. A crise de 1929, e a "década infame" que se seguiu, acabaram com o ímpeto democratizante de um país já fortemente urbanizado, próspero e com uma classe média representativa.

De certo modo, esse ambiente já "desenvolvido" ficou entravado em comparação com outros países. Mafalda, já "adulta" em seus interesses e ideias, está presa a sua condição de criança —​não pode ir adiante. Com isso, tornou-se eterna.

Quanto a nós, brasileiros, o caso é outro. Com razão, Mafalda encara, desiludida, seus vizinhos Manolitos, a fantasiarem riquezas futuras em meio a uma espessa estupidez.

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