Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Burrice humana parece ilimitada e futuro de bobagens é incerto

Febres como procurar pokémons no meio da rua, jogar 'Second Life' e se divertir com o Wii foram efêmeras demais

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Não faz tanto tempo assim, apareceu para vender uma espécie de óculos que prometia ser a atração tecnológica do futuro. Era um equipamento de realidade virtual; você ligava no computador e seria “transportado” para onde quisesse.

A fila era grande no shopping, e sinceramente não lembro se experimentei ou não. Acho que a proposta era fazer com que a gente se sentisse dentro de um aquário tropical.

Mas tudo seria possível: ficar rodeado de pombas na frente da basílica de São Marcos em Veneza, enfrentar de espada em punho um guerreiro ninja, grudar no rosto o bigode de Mario e sair desembestado no sobe e desce do videogame.

Veio a pandemia, com todo mundo confinado em casa… E não sei de ninguém que tenha recorrido à geringonça.

Antes disso, e um pouco mais popular, havia o Wii —aparelho de videogame que obedecia aos seus movimentos dentro de casa. Você podia virar golfista ou bailarino de tango dentro da mais exígua quitinete.

Mas o confinamento, que eu saiba, não revelou nenhum talento nessas atividades virtuais, e quem tinha esse console o deixou empoeirar junto ao aparelho de telefone fixo.

Moral da história –há tecnologias que tinham tudo para dar certo e simplesmente não pegaram.

A explicação talvez varie caso a caso. Imagino que algumas chegaram antes do tempo; outras não cumpriram a promessa, sendo ineficientes ou excessivamente caras.

Surgiram também modas que, por sorte, terminei me abstendo de comentar em artigos por aqui. Não durou mais de 15 dias a febre de achar pokémons no meio da rua, apontando o celular.

O fenômeno do “Second Life” até que se tentou ressuscitar recentemente, mas não houve como superar a fundamental chatice daquela existência computadorizada, tão semelhante à real. Talvez o problema esteja na, desculpe o neologismo, “trabalhosidade” da coisa.

O ser humano se dedica, claro, às atividades mais inúteis que Deus ou o Diabo queiram lhe propor; tudo vicia.

Mas é como se, para nos tornarmos dependentes psicológicos ou físicos, nosso corpo tivesse de se manter o mesmo. O recurso a uma aparelhagem como óculos 3D nos sequestra para longe demais de nós mesmos.

Num videogame convencional, eu controlo os movimentos do bonequinho, e, perdendo ou ganhando, minha aventura acontece na terceira pessoa. Eu sou “ele” e também não sou.

Na busca pelos pokémons, continuo a ser eu mesmo. Mas estou às voltas com uma virtualidade que se torna “real” demais. É difícil não se sentir idiota ou iludido depois de um tempo, uma vez que não tenho o álibi de ser Mario ou Batman enquanto me dedico à busca dos bonecos.

No “Second Life”, era possível encarnar outros personagens, escolher um avatar. Triste fantasia, feita para não durar muito mais que uns dias de Carnaval. “Du bist am Ende —was du bist.” No fim, serás sempre o que tu és, dizia Mefistófeles no “Fausto” de Goethe.

As coisas talvez ficassem mais divertidas se o avatar fugisse por vezes de nosso controle, se tivesse instintos e personalidade independentes.

O estranho, em suma, é que a burrice humana parece ilimitada, mas, quando menos se espera, a aposta numa bobagem deixa de dar certo.

O raciocínio ganha dimensões mais preocupantes quando se passa para o mundo dos investimentos financeiros.

Um desenho mostra óculos 3D, controle de TV e um console de Pokemon inseridos em um local rodeado de uma faixa vermelha, que os proteje
Publicada em 28 de setembro de 2021 - André Stefanini

Não me lembro que ator ou celebridade resolveu se tornar o primeiro ser humano a vender ações de si mesmo na Bolsa de valores. Não deu certo; a menos que tudo tenha sido uma performance artística.

E, nesse campo, a novidade são as obras de arte virtuais: uma imagem qualquer na internet se torna, por obra e graça do mercado, “peça única”, ou NFT —non-fungible token. Vai a leilão e, em troca da “propriedade” disso, o “artista” embolsa dezenas de milhões de dólares.

Absurdo! Mas, no fundo, não tão absurdo assim. Também um rabisco ou bituca de cigarro “reais” podem alcançar milhões de dólares num leilão, se tiverem passado pelos dedos de Van Gogh ou James Dean. Pura especulação, ou lavagem de dinheiro, sei lá. Não entendo nada disso.

Termino com uma especulação também. Na frase célebre de Marx, “tudo que é sólido se desmancha no ar”. O dinheiro há muito tempo já não corresponde a uma quantidade de ouro. Agora, com os NFTs, a propriedade se torna “privada” e “exclusiva” apenas no mundo imaginário. A obra, como o dinheiro, se dissolve; a riqueza nem tem com que gastar e entra num estado puramente líquido. Não sei, claro, qual o futuro dessa ilusão.

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