Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Mundo deve à Turquia grandes avanços da ciência como a vacina contra Covid

Empresa que se associou à Pfizer para a produzir o imunizante foi fundada por casal turco, mas este não é o único caso

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Se você ficou torcendo, como eu, para ter a vacina da Pfizer, ainda está em tempo de agradecer a um casal de origem turca.

Ugur Sahim e Özlem Türeci fundaram em 2008 a BioNTech, na Alemanha, associando-se à Pfizer para a produção da vacina contra o coronavírus.

Claro, tudo é um esforço mundial e coletivo —e ainda me lembro de quando se falava que a vacina talvez não fosse descoberta nunca.

colagem com o busto de Lady Mary Wortley Montagu sob fundo verde. Ao fundo vemos a imagem de um bico de pena dividido que se transforma em seringa ao redor de círculos coloridos
Ilustração publicada em 5 de julho - André Stefanini

Em todo caso, falo da Turquia porque não é a primeira vez que a humanidade lhe deve ações inteligentes contra a transmissão de doenças contagiosas.

Li faz pouco tempo as cartas de Lady Mary Wortley Montagu, que viveu entre 1689 e 1762, "The Turkish Embassy Letters", ou as cartas da embaixada turca, que até onde sei ainda não foram traduzidas no Brasil. Ela acompanhou o marido, embaixador inglês, ao que era então o Império Otomano. Chegou a Constantinopla, hoje Istambul, em fevereiro de 1717, e ficou por lá até meados do ano seguinte.

Naquele país muçulmano, familiarizou-se com a técnica da inoculação do vírus da varíola em pessoas saudáveis. A doença cobria o doente de pústulas e, quando não matava, desfigurava-o para sempre.

Quem tem a minha idade certamente se lembra de ter visto "bexiguentos", como se falava no século passado, com o rosto que parecia furado feito cortiça.

Foi o caso de Beethoven, Lincoln e Stálin. Só no século 20, a varíola matou centenas de milhões de pessoas —para não falar dos que ficaram cegos. A varíola dos macacos, por enquanto, é fichinha perto disso.

Eis o que Mary Wortley Montagu escreve da Turquia, em 1717: "A varíola, tão mortífera e comum entre nós, é aqui totalmente inofensiva graças à invenção do 'enxerto' [engrafting], esse o nome que lhe dão".

Ela explica. "Todo outono, no mês de setembro, quando o calor arrefece, as pessoas [...] se reúnem (em geral umas 15 ou 16) e uma anciã aparece com uma casca de noz, repleta com um depósito da melhor varíola, e pergunta qual a veia que você prefere que ela abra. Usa então uma grande agulha e coloca na veia tanta peçonha quanto a que couber na ponta da agulha."

O procedimento era feito por mulheres de idade, especialistas na vacinação. Depois de abrir a veia, elas amarravam uma conchinha no ferimento; repetiam a coisa em mais quatro ou cinco veias. Os gregos, que eram cristãos, escolhiam a testa, os dois braços e o peito, para imitar o sinal da cruz.

Depois de oito dias, vinham sintomas leves, e o perigo maior da doença estava afastado.

Enfiar material contaminado na veia de alguém saudável? Coisa de comadres... Pior ainda, coisa de bárbaros, de muçulmanos, de ignorantes!

Médicos ingleses resistiram ao máximo (a introdução do livro de Montagu, publicado pela Broadview Editions, dá exemplos disso). Além do preconceito, havia naturalmente o medo de testar a novidade. Criminosos concordaram em ser cobaias, em troca de se livrarem da cadeia.

Pesou o fato de Lady Mary ser uma pessoa importante; ela própria tinha sido vitimada pela doença, que devastou sua beleza e não hesitou em inocular os filhos quando ocorreu um surto na Inglaterra. Ela teve também apoio da princesa de Gales, sua amiga.

Vinte anos depois, Voltaire já divulgava a técnica para os franceses, em suas "Cartas Filosóficas".

A história das vacinas no Ocidente é anterior, por certo, às cartas de Mary Wortley Montagu; notícias sobre o sistema turco (que, parece, tinha por sua vez vindo da China) já circulavam pela Europa. E foi só em 1796 que, usando o pus da varíola das vacas, Edward Jenner chegou a uma forma realmente segura de inoculação.

O livro de Mary Wortley Montagu dedica só umas poucas páginas ao experimento médico. Ela escreve longamente sobre o tratamento das mulheres na corte do sultão (os viajantes do sexo masculino tinham, obviamente, zero acesso às intimidades do harém), comparando-o, não desfavoravelmente, à opressão social e financeira que se abatia sobre as inglesas.

Tudo é escrito com graça literária, em especial nas infinitas variações com que a autora se justifica (como todo mundo) pelo atraso em responder às cartas que recebe.

Sobretudo, duas características do iluminismo se veem aqui representadas com brilho. O espírito da experimentação prática, do teste real dos fatos, e a ausência de qualquer medo ou preconceito.

Os médicos da época acabaram aprendendo a lição. As cartas de Lady Mary chegaram, de modo geral, a seu destino. Mas, no Brasil, nos Estados Unidos e tantos outros lugares, muita gente ainda parece incapaz de abrir o envelope.

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