Marcelo Gleiser

Professor de física e astronomia na Universidade Dartmouth (EUA), autor de “A Simples Beleza do Inesperado”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcelo Gleiser

O que podemos aprender com as crianças

Crianças nascem cientistas com o mundo como laboratório, mas adultos às vezes reprimem descobertas

Hoje de manhã, levando meus filhos para a escola, tive que desligar o rádio. Só se falava em morte: terroristas suicidas no Afeganistão, violência nas ruas do Brasil e do mundo, na faixa de Gaza, controle de armas para evitar mais ataques em escolas nos EUA, corrupção política, o vício e a ganância do homem ocupando o centro do palco.

Crianças, em um parque de areia, brincam em um balanço
Crianças brincando na praça Princesa Isabel, em São Paulo - Zanone Fraissat/Folhapress

A certa altura, meu filho de onze anos, sentado no banco de trás, horrorizado, disse: “ei pai, e você fica dizendo que videogame que é violento!”. Foi quando desliguei o rádio.

Vivemos em uma sociedade que tem uma atração patológica pela morte. Aparentemente, boa notícia não vende ou é interessante. Ou, talvez, no sofrimento dos outros encontramos um alívio para o nosso.

Contraste isso com, por exemplo, a experiência que tive alguns anos atrás quando viajei pelo país durante a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia.

Mais de 800 cidades em todo o Brasil produziram algum tipo de evento sobre ciência, com o objetivo de atrair o interesse das crianças e dos jovens aos estandes de exibição e atividades. Isso se repete todos os anos. Naquele ano (2013), Brasília foi centro das atividades, focadas nos esportes e na melhora da qualidade de vida.

Ou seja, um foco na vida, através da ciência.

Todos os dias, milhares de crianças visitaram o centro de exposições, trazidas pelas suas escolas. As mais novinhas, do jardim de infância, andavam em fila de mãos dadas, para não se perder nas multidões.

De olhos arregalados, devoravam tudo o que viam, absorvendo o máximo de informação que podiam. Tenho certeza de que muitas delas, a maioria de áreas carentes, não se esquecerão desse dia, tão diferente dos seus outros. Pelo menos por um dia, a ciência se transformava em um portal mágico, capaz de transportá-las para um mundo cheio de descobertas e fantasias.

O grande físico Isidor Rabi disse uma vez que os cientistas são os Peter Pans da sociedade, os que nunca param de fazer as perguntas que as crianças fazem o tempo todo. O “Por que isso? Por que aquilo?”, que costuma irritar os pais —os quais, em geral, não sabem a resposta e têm preguiça de procurá-la. (Uma grande oportunidade perdida, na verdade, pois nada melhor do que a família aprender junta algo novo.)

Para uma criança, o mundo é um grande laboratório, cheio de experimentos a fazer, explorando como objetos interagem entre si, como animais vivem e comem, como plantas crescem e morrem. Toda criança nasce cientista, testando hipóteses e experimentando para aprender.

Deixar algo cair no chão para ver se quebra, encher um copo com um monte de fluidos e comidas fazendo “poções mágicas”, colocar coisas no fogo para ver como queimam, misturar tintas de cores diferentes, fazer aviões de papel para ver os que voam melhor, colecionar insetos etc.

O mundo se abre quando a curiosidade pode voar livremente.

Até, claro, os adultos chegarem.

“Não mexe nisso! Cuidado, vai quebrar! Você vai se queimar! Se molhar! Levar choque! Ser picado!”

Sendo pai de cinco, entendo bem que temos que explicar para as crianças a diferença entre explorar brincando e se machucar brincando de explorar. Mas existe uma diferença enorme entre educar uma criança a ter cuidado e reprimir seus instintos de exploração, sua relação lúdica com o mundo.

Nas escolas e em casa, forçamos as crianças a se conformar a moldes rígidos de comportamento, a serem todas iguais, suprimindo comportamentos e atitudes vistas como provocadoras, reprimindo perguntas que achamos chatas, insistentes ou, pior ainda, bobas.

Até manifestações de carinho são ocasionalmente vistas com suspeita: não invada o espaço do Chiquinho, fique na sua bolha. Queremos crianças afetuosas, mas dentro de nossos moldes ascéticos.

Temos muito o que aprender com as crianças. Se queremos motivá-las a se interessar pela ciência, temos que deixá-las soltas, dando-lhes espaço para realizar seus experimentos, enquanto crescem num mundo estranho e tantas vezes hostil.

Da energia delas acabamos por nos liberar também, focando nossa atenção na vida e não na morte, no senso de maravilhamento com o mundo e com as pessoas, e não na nossa obsessão diária com a morte, com o crime, com a destruição.

É óbvio que precisamos saber o que ocorre na sociedade e na política, como entendemos bem no Brasil atual. Mas para uma sociedade saudável, o equilíbrio entre os opostos é essencial.

Talvez os grandes portais de mídia e informação devam fazer o seu grande experimento, e ver o que ocorre com a sociedade se o foco das notícias deixar de ser a morte e o crime, e se transformar na vida e na criatividade humana.

Obviamente, se a intenção dos noticiários é nos informar dos horrores de que somos capazes como forma de prevenção, podemos com segurança absoluta afirmar que esse experimento fracassou. É hora de tentarmos outro.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.