Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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Marcelo Leite
Descrição de chapéu febre amarela

Ministro errou feio ao anunciar fim do surto de febre amarela em 2017

Faltou prudência ao ministro da Saúde, Ricardo Barros (PP), em setembro do ano passado, quando anunciou o fim do surto de febre amarela. Ele justificou dizendo que o último caso registrado havia ocorrido três meses antes, e agora se vê que cometeu um erro crasso.

A razão é simples: aqueles três meses de inverno são os mais secos nas regiões afetadas, em especial o Sudeste do país. Com menos chuvas, há menos água acumulada em ocos de árvores para a reprodução de mosquitos Haemagogus e Sabethes, transmissores do vírus da febre amarela entre macacos e, ocasionalmente, para seres humanos.

Dito de outro modo, a diminuição de casos era apenas sazonal. Barros quis dar uma de esperto e faturar politicamente a variação momentânea, mais preocupado talvez com a aproximação de um ano eleitoral do que com a população.

Deu no que deu. Num país com governo menos pusilânime do que o de Michel Temer (MDB), teria sido demitido em 2018, com o retorno acentuado de infecções.

Especialistas como Maurício Lacerda Nogueira, da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (SP), dizem que o surto estava há muito previsto. Uma "tempestade perfeita", nas palavras de Paolo Zanotto, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP. A febre amarela está só fazendo o caminho de volta para os locais por onde entrou no Brasil.

O vírus chegou aqui nos tempos da Colônia, o mais provável, a bordo de navios vindos da África. Causava surtos esporádicos em cidades como o Rio de Janeiro. Com o tempo, deixou de depender da via marítima e se espalhou entre macacos da mata atlântica.

Com o desmatamento, a consequente queda na população de símios e as campanhas de vacinação e de erradicação de mosquitos, a febre amarela urbana terminou erradicada no começo do século 20. Foi, por assim dizer, empurrada para rincões como a Amazônia.

Entretanto, o vírus continuava a circular entre macacos, com a ocorrência de epizootias (epidemias animais) em ciclos de oito anos. Esse é o tempo aproximado que a população desses bichos leva para se recompor depois de dizimada por um surto de febre amarela na mata, como os que continuaram a acontecer pelo país.

Por esse motivo havia recomendação para vacinar a população humana em duas dezenas de Estados, ainda que não em todos os municípios. Em São Paulo, por exemplo, recomendava-se a vacinação no oeste do Estado, mas não na região metropolitana da capital e noutras cidades próximas da costa.

Um Estado decisivo para manter esse bloqueio da febre amarela era Minas Gerais. Contudo, concentrou-se a vacinação ali em crianças e no território a oeste do rio São Francisco. A cobertura alcançou pouco mais de metade dos mineiros, uma proporção insuficiente para fechar a avenida franqueada ao vírus.

É provável que haja outros fatores por trás da marcha de retorno da febre amarela para a faixa costeira do país. Especula-se que variações climáticas como aumento de temperatura (aquecimento global), padrões de chuva alterados por El Niños intensos e até a regeneração parcial da mata atlântica tenham criado condições mais favoráveis para os mosquitos vetores do ciclo silvestre da doença.

Com mais mosquitos voando no mato, aumenta a chance de uma pessoa –ecoturistas, pescadores e agricultores, por exemplo– ser picada por um Sabethes ou por um Haemagogus e receber o vírus colhido antes pelo inseto, ao chupar o sangue de um macaco doente. O problema está no mosquito, não nos primatas, vítimas tão passivas da febre quanto nós.

Apesar de todo o pânico atual, em grande medida injustificado, a febre amarela silvestre não é nem de longe tão preocupante quanto a versão urbana da doença. Nas cidades, teme-se que o vírus venha a ser transmitido de pessoa para pessoa pelo Aedes aegypti, o mesmo mosquito da dengue, da zika e da chikungunya.

Importante dizer que isso ainda não aconteceu, ou pelo menos não há comprovação disso. Mas o Aedes continua por aí, embora se debata entre pesquisadores se essa população de mosquitos que infesta as cidades tem muita ou pouca competência para transmitir o vírus da febre amarela.

Essa é a hora de montar um esforço concertado de pesquisa para entender melhor o que está alimentando o surto de febre amarela. Mas o governo federal e todos os outros estão na penúria, cortando tudo quanto é verba para instituições de ciência.

Para piorar, temos um ministro que não está à altura do desafio. Barros foi obrigado a recorrer, apenas quatro meses depois de festejar o suposto fim do surto, a uma campanha de vacinação com doses fracionadas –sinal seguro de que o estoque não divulgado de imunizante seria insuficiente para vacinar a população alvo com a dose usual.

Parte do alarme que ora se observa e das filas nos postos de saúde engrossadas por quem não precisa de vacina se deve a ignorância e desorientação. A outra parte, porém, decorre da incompetência deste governo e dos anteriores para lidar até com doenças do século 19.

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