Marcelo Leite

Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

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A arminha fumegante da cloroquina

Estudo recente de brasileiros não deu tiro de misericórdia na farsa do presidente

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Jair Bolsonaro diz que se curou da Covid-19 tomando hidroxicloroquina (HCQ) e segue com a propaganda da suposta panaceia. Sua arminha agora é uma caixa do remédio antimalárico, que usa para inverter o ônus da prova e fazer o disparo dos óbitos sair pela culatra da ciência.

Fossem estes tempos normais, caberia a ele e seus asseclas pesquisadores provar que a HCQ funciona contra o novo coronavírus (Sars-CoV-2). Tanto fizeram que estão ganhando o duelo, ao forçar o gasto de tempo e verbas de pesquisa na empreitada fútil de evidenciar que ela não é uma bala de prata.

Repete-se, assim, o equívoco custoso da fosfoetanolamina. Ou melhor, um crime contra a saúde pública em país tão carente quanto o Brasil. Charlatanismo patrocinado por militares, sempre é bom (na realidade, ruim) lembrar.

Jair Bolsonaro publica vídeo tomando hidroxicloroquina e se diz melhor da Covid-19
Jair Bolsonaro publica vídeo tomando hidroxicloroquina e se diz melhor da Covid-19 - 07.jul.2020/Reprodução

Na semana passada, artigo publicado no periódico New England Journal of Medicine por um grupo brasileiro pareceu desferir golpe fatal na patranha. A julgar pelas instituições envolvidas, pelo tamanho da amostra e pelo prestígio da revista, assim foi noticiado.

Não era bem assim, alertou nas redes sociais a microbiologista Natalia Pasternak. Como a fundadora e presidente do Instituto Questão de Ciência tem mais competência para explicar as limitações do estudo, convidei-a para escrever o texto abaixo.

Ciência e jornalismo são movidos a ceticismo saudável e crítica honesta. A eles, então, mesmo que sob risco de ver seus frutos instrumentalizados por quem só quer espalhar confusão.

Esta coluna foi produzida especialmente para a campanha #CientistaTrabalhando, que celebra o Dia Nacional da Ciência. Ao longo do mês de julho, colunistas cedem seus espaços para abordar temas relacionados ao processo científico, em textos escritos por convidados ou por eles próprios. Com a palavra, Natalia Pasternak:

Um trabalho brasileiro veio, na última semana, somar-se aos diversos estudos publicados recentemente apontando que hidroxicloroquina (HCQ), com ou sem o antibiótico azitromicina, não é uma boa opção para tratamento de Covid-19. Publicado na prestigiosa revista New England Journal of Medicine, o estudo, compreensivelmente, causou grande impacto na imprensa nacional.

Esse trabalho representa um marco na pesquisa clínica brasileira, ao envolver estudiosos e pacientes de 55 hospitais, num desenho experimental complexo e repleto de desafios. É uma prova da capacidade de organização e mobilização da ciência médica nacional, a despeito dos inúmeros entraves logísticos, financeiros e burocrático–regulatórios.

Como todo trabalho de pesquisa, no entanto, o estudo contém limitações —muitas das quais apontadas com transparência pelos próprios autores— que, num momento de polarização em que artigos científicos são debatidos pelo público como episódios de série da Netflix, podem cumprir uma importante função didática.

O estudo distribuiu 667 pacientes, aleatoriamente, em um grupo de controle, um que receberia HCQ e um que receberia HCQ e azitromicina. A distribuição ao acaso é feita para reduzir o risco de os grupos serem desequilibrados —haver mais pacientes graves em um deles, por exemplo.

Após confirmação de diagnóstico da Covid-19, apenas 504 prosseguiram. Com isso, perde-se em parte o efeito aleatório.

Além do mais, o estudo foi aberto: médicos e pacientes sabiam quem estava em qual grupo. Não é o ideal, porque permite que a “torcida” dos envolvidos influencie o resultado, ainda mais num trabalho que envolve desfechos “moles”, isto é, sofrem influência da interpretação subjetiva do médico e do paciente.

O resultado principal avaliado pelos autores foi uma estatística chamada “razão das chances” (do inglês “odds ratio”, ou OR). Um OR de 2 quer dizer que quem tomou o remédio tem duas vezes mais chance de piorar da doença do que quem não tomou.

O estudo chegou a um OR médio próximo a 1. Isso significa não haver diferença alguma entre os grupos, mas com incerteza muito grande, associada a um intervalo de 0,69 a 2,11.

Esta grande amplitude sugere que o poder estatístico do estudo —sua capacidade de detectar um benefício real para paciente— é baixo, porque calculado na esperança de encontrar um grande efeito positivo da HCQ.

Um poder baixo traz dois riscos: o de se constatar um benefício falso, ou de se deixar de detectar um benefício verdadeiro. Como os próprios autores ressaltam, “o teste é incapaz de excluir de forma definitiva um benefício ou um dano substancial das drogas testadas”.

Esse estudo deve ser entendido em contexto mais amplo. Se fosse o único trabalho publicado até o momento sobre HCQ para Covid-19, a questão seguiria, a rigor, em aberto. Mas, no cenário atual, ele vem somar-se aos diversos estudos demonstrando que o medicamento não deve ser utilizado.

Num contexto global, a plausibilidade da HCQ contra Covid-19 sempre foi baixíssima. Uma busca na literatura científica, ainda em março, já teria mostrado que a cloroquina era uma péssima aposta contra doenças virais. O trabalho inicial em humanos do grupo de Didier Raoult rapidamente tornou-se uma nódoa na reputação dos envolvidos.

Quando a história desta pandemia for escrita, um espaço de destaque será reservado para narrar como uma área que se queixa tanto da escassez de meios —a pesquisa científica, em escala mundial—​ decidiu apostar parte de seus parcos recursos num fracasso anunciado.

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