Marcos Lisboa

Economista, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula)

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Descrição de chapéu Energia Limpa Prêmio Nobel

Daniel Ellsberg, o pacifista que tirou do eixo o impacto da incerteza nas decisões das pessoas

Ele vazou documentos do Pentágono sobre a guerra do Vietnã e também fez história na ciência

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Marcos Lisboa José Heleno Faro

Daniel Ellsberg provocou dois choques sísmicos em mundos distintos. Na academia, abriu as portas para novos modelos para analisar como a incerteza afeta as escolhas individuais, base dos modelos da economia.

No começo dos anos 1970, seu impacto foi de outra ordem. A guerra do Vietnã não ocorria como o governo americano contava, e Ellsberg sofreu uma perseguição implacável ao revelar informações até então omitidas da sociedade.

No começo dos anos 1960, ele esteve no Vietnã e percebera que a realidade da guerra era diferente do que o governo contava.

A imagem mostra a silhueta de um helicóptero em vermelho sobre um fundo preto. A silhueta é preenchida com recortes de jornal, incluindo o logotipo do 'The New York Times' e textos como 'THE PENTAGON PAPERS' e 'As published by the New York Times'. Na parte inferior da imagem, há formas abstratas em vermelho que lembram explosões
Ilustração de Edson Ikê para coluna de Marcos Lisboa - Edson Ikê/Folhapress

Posteriormente, foi trabalhar na equipe do então secretário de Defesa dos Estados Unidos, Robert MacNanara. Aos poucos, descobriu mentiras que o governo contava para conseguir apoio da sociedade e do Congresso para escalar a guerra, que enfrentava dificuldades imensas, omitidas pelo discurso oficial.

Em 1969, Ellsberg leu o estudo ultrassecreto sobre o histórico da guerra encomendado por McNamara. As milhares de páginas do estudo revelavam os verdadeiros motivos do conflito, a escalada da tragédia perpetrada pelos EUA, as imensas dificuldades em vencer a guerra e como seguidos governos enganaram a população.

Ellsberg resolveu copiar os documentos e torná-los públicos, por meio da imprensa e do Congresso.
Não foi uma decisão fácil, nem com consequências previsíveis, que resultaram em acusações que poderiam levar a mais de cem anos de prisão.

As leis de segurança nacional frequentemente entravam em conflito com a primeira emenda da Constituição, que garante a liberdade de expressão.

Eugene Debs, candidato à presidência da República dos EUA por cinco vezes, concorreu a última vez da cadeia, preso em 1918 por sugerir em um comício que os jovens deveriam se recusar a participar do alistamento na Primeira Guerra Mundial.

Ellsberg sabia que poderia ser condenado. E que a retaliação seria severa. Para dar apenas um exemplo, agentes do governo americano invadiram o consultório do seu terapeuta atrás de registros que o comprometessem.

O caso dos Pentagon Papers inflamou a revolta contra a guerra do Vietnã e levou a mudanças na jurisprudência americana, expandindo a liberdade de expressão.

Posteriormente, contudo, o governo americano voltou a perseguir quem divulga documentos secretos, como no caso de Julian Assange, ameaçando a liberdade de expressão.

Ellsberg, por sua vez, continuou até o fim da vida engajado na agenda pacifista iniciada com os Pentagon Papers.

Antes disso, na sua tese de doutorado, realizara uma pesquisa inovadora sobre como as pessoas percebem e reagem à incerteza.

A economia estuda os processos de interação social por meio de mercados ou de outros desenhos institucionais. O ponto de partida são os processos das escolhas feitos pelos indivíduos ou governos que, usualmente, são decididos sob incerteza (teoria da decisão).

Não se sabe exatamente as consequências das diversas escolhas possíveis. Em certos casos, os eventos são raros, como a chance de uma nova pandemia na próxima década.

A imagem mostra Daniel Ellsberg, em uma foto de 2016. Ele veste um terno preto, camisa branca e gravata vermelha. Ele está sentado e parece estar em um ambiente interno com fundo escuro.
Daniel Ellsberg ficou conhecido pelo "Pentagon Papers" que falava sobre a Guerra do Vietnã - Arno Burgi - 21.fev.2016/AFP

Nos anos 1940 e 1950, a economia começou a tratar com rigor o tema da teoria da decisão. Os primeiros trabalhos analisavam a incerteza como probabilidades objetivas, como em um jogo de cartas ou o lançamento de uma moeda equilibrada.

Rapidamente, o modelo de teoria da decisão foi estendido para casos em que as consequências das escolhas são incertas e não há probabilidades conhecidas que descrevam as chances dos cenários relevantes.

O resultado mais famoso foi obtido por Leonard Savage, que desenvolveu o modelo de utilidade esperada com probabilidades subjetivas.

Como usual, Ellsberg optou pela contramão. Em uma contribuição seminal, ilustrou como as pessoas podem se comportar de forma distinta do previsto pelo modelo da utilidade esperada.

Um exemplo simples do problema estudado por Ellsberg é imaginar duas urnas —A e B— cada uma contendo 100 bolas, que podem ser verdes ou azuis. Na urna A, temos 50 bolas de cada cor. Na urna B, por outro lado, não se sabe a proporção das duas cores.

Duas opções são formuladas. Na primeira, uma bola será retirada ao acaso de cada uma das urnas. As pessoas ganham R$ 100 se a bola for verde, mas têm que escolher de qual urna aceitam a aposta. Ellsberg sugere que a maioria prefere apostar na urna A, onde as proporções são conhecidas.

Na segunda, uma pergunta similar é feita sobre qual urna as pessoas preferem, só que agora trata-se da bola azul. Novamente, a maioria preferiria a urna A.

Essas respostas não são compatíveis com o modelo de utilidade esperada. Por esse modelo, se na primeira pergunta preferem A é porque achariam mais provável extrair a bola verde neste caso do que na urna B. Mas a segunda resposta revelaria uma crença inversa.

Ellsberg propõe que a maioria preferiria situações em que as chances dos diversos cenários são conhecidas do que quando são desconhecidas. Por isso, a escolha em ambas as opções, antagônicas, pela urna A.

Esse resultado ficou conhecido como Aversão à Ambiguidade e foi observado em diversos casos posteriormente.

Depois de Ellsberg, generalizou-se a realização de experimentos controlados para testar os modelos teóricos dos economistas sobre como as pessoas fazem as suas escolhas.

Novas abordagens para analisar o processo de decisão se mostraram compatíveis com as observações sugeridas por Ellsberg, como os trabalhos pioneiros com expectativas não lineares propostos por David Schmeidler e Itzhak Gilboa.

Esse campo de pesquisa tem permitido, por exemplo, novos modelos em teoria de finanças e contribui para analisar fenômenos como graves crises e seus impactos em bruscos movimentos de capital, que afetam de forma desigual instituições financeiras e países.

Mais tarde, os ganhadores do prêmio Nobel Lars Hansen e Tom Sargent desenvolveram a abordagem Robusta para analisar o processo decisório quando não se sabe quais entre diversos modelos melhor descrevem o que ocorre empiricamente.

Isso ocorre, para dar um exemplo atual, com os muitos modelos que estimam os impactos da mudança climática, que apresentam resultados díspares entre si.

O Paradoxo de Ellsberg, como seu resultado ficou conhecido, marca o começo de uma extensa agenda de pesquisa.

Em 2002, outro Daniel, Kahneman, ganhou o prêmio Nobel por trabalhos nessa área realizados em parceria com Amos Tversky, que, infelizmente, morrera antes.

Daniel Ellsberg faleceu em junho de 2023. Com um ano de atraso, prestamos nossa homenagem.

José Heleno Faro

É professor do Insper

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