Marcos Lisboa

Economista, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula)

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Marcos Lisboa

Pequena África

Região do Estácio nos legou o samba e o choro; retribuímos com abandono

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A praça Onze ficava na fronteira da área urbana do Rio de Janeiro no Império.

No final do século 19, negros que se libertavam da escravidão começaram a povoar a região, criando o que ficou conhecido como Pequena África.

A música que hoje nos identifica nasceu do mais inesperado encontro proporcionado pela generosidade de grupos trazidos com brutalidade.

Instrumentista e compositor carioca Pixinguinha fuma cigarro
Instrumentista e compositor carioca Pixinguinha fuma cigarro - Folhapress

Os quintais das casas simples acolhiam os amigos que iam chegando com seus instrumentos musicais e entravam nas rodas.

Ritmos de origem africana, como lundu e jongo, se misturavam com a música de origem europeia, como a valsa e a polca. A música integrava. Do improviso, surgiram o maxixe, o choro e o samba.

A recente edição revista do livro de Roberto Moura, "Tia Ciata", resgata a história da Pequena África.

A mágica dos quintais, que recebiam amigos para rodas de música, se esparramou nas décadas seguintes pela estrada de ferro que saía perto da Pequena África para o norte do estado, nos bairros que cresciam às suas margens, como Madureira e Oswaldo Cruz.

Havia as "tias", muitas vindas da Bahia, como Tia Ciata, Tia Sadata, Tia Perciliana, mãe de João da Baiana, e Tia Amélia, mãe de Donga, líderes na comunidade, que abriam suas casas para os encontros.

Pixinguinha transformou o choro de Joaquim Callado na arte que conhecemos. Como tantos músicos da sua época, aprendeu música ouvindo as rodas nas casas de seus pais.

Muitos desses encontros combinavam o prazer da música com a religiosidade de matriz africana, como o Candomblé, e ambos eram reprimidos com a brutalidade da época.

O choro era relativamente mais aceito. Hermano Viana conta em "O Mistério do Samba" a visita de Gilberto Freyre ao Rio de Janeiro em 1926.

Alguns haviam comentado sobre o jovem antropólogo que fizera um artigo sobre James Joyce e o convidaram. Ele aceitou, mas desejava conhecer a música popular carioca, sobretudo seus autores negros.

E a noitada incluiu Pixinguinha, Donga, Villa-Lobos, Sérgio Buarque de Holanda e muitos outros.

Poucos anos antes, parte da elite se encantara com o sucesso do grupo de Pixinguinha em Paris. Outros, na contramão, se revoltaram com o Brasil que era apresentado aos europeus.

Convidados para uma homenagem em um hotel de luxo no Rio, Pixinguinha e seus músicos foram barrados. Tinham que usar a porta de serviço e entrar pela cozinha. Quando o gerente soube, pediu desculpas a Pixinguinha e disse que ia demitir o porteiro.

Mas ele não sabia de Pixinguinha, seu gênio na música e sua generosidade. Pelos relatos, disse algo assim: "Deixa o rapaz, pois ele cumpria ordens".

Jacob do Bandolim era conhecido pela sua obsessão com a execução impecável. "Vibrações" talvez seja a gravação instrumental mais perfeita da nossa história. E reclamava com Pixinguinha, a quem admirava imensamente, por aceitar tocar com todos, ajustando a qualidade da sua execução ao que se fazia no entorno.

Quando Pixinguinha morreu, no Carnaval de 1973, um programa da TV Cultura organizou uma edição especial com Paulinho da Viola, Elton Medeiros e o Conjunto Época de Ouro, impecável de Jacob, que morrera anos antes.

A brutalidade contra o samba era bem maior do que contra o choro. E o primeiro samba registrado, "Pelo Telefone", atribuído a Donga, parece mais um maxixe.

A Pequena África e o morro de São Carlos, que lhe sombreia, resolveram fazer novas revoluções. Em meados da década de 1920, alguns sambistas inovaram na cadência e no ritmo.

O grupo era grande, mas Ismael Silva acabou sendo o sambista emblemático do Estácio. Com méritos. "Se você Jurar", por exemplo, é uma das suas músicas mais conhecidas e nele encontramos o fio de Ariadne de Noel Rosa, Wilson Batista, Candeia, Paulinho da Viola e João Bosco.

Certo que houve os inesperados, que resgataram o canto comovente da África, como Clementina e Cartola, que ainda produziu sambas e letras de entortar, ou Jorge Ben, que fez a sua própria revolução tempos depois.

Desfile da Portela no Carnaval de 2023
Desfile da Portela no Carnaval de 2023 - Ricardo Moraes/Reuters

Mas o grupo do Estácio deu um passo adicional. Eles ensinavam o samba, eram professores e o que organizavam era uma escola. E essa escola tinha regras: os blocos eram organizados, havia ordem. A nova cadência permitia dançar e desfilar, como conta Humberto Franceschi em "Samba de Sambar do Estácio".

A influência africana, e sua diversa religiosidade, aparece em detalhes, como a forma variada de tocar instrumentos da bateria.

Surgiu a "Deixa Falar", e a Escola de Samba passou a ajudar a organizar a comunidade e seus vínculos de solidariedade. O respeito aos mais velhos, o cuidado da comunidade, sobretudo com as crianças.

Nos anos 1950, a "Deixa Falar" e outros blocos da região se unem para formar a Escola de Samba Unidos de São Carlos, mais tarde renomeada Estácio de Sá.

Anos depois, Paulo da Portela sai do morro de São Carlos e vai para Madureira. E repete as regras do Estácio, como aprendi com Sérgio Cabral, no prefácio da primeira edição do livro de Candeia e Isnard Araujo, "Escola de Samba, árvore que esqueceu a raiz".

Os homens deveriam vestir os pés e o pescoço (usar sapatos e gravata). A Escola de Samba deveria ser o resultado da comunidade, de trabalhadores, muitos operários, que contribuíam e que cuidavam uns dos outros.

Assim nasceu a Portela. Paulo ia de casa em casa afirmando aos pais que suas filhas poderiam participar dos desfiles, pois ele garantia que seriam cuidadas.

A praça Onze não existe mais. A Pequena África foi rasgada pela avenida Presidente Vargas em meados do século passado. Abandono das terras, de um lado; descaso pelas pessoas, do outro.

A região do Estácio nos trouxe o melhor da nossa música. Ela foi relegada ao abandono e à opressão em meio a prédios de espigões corporativos que escondem moradias degradadas e alguns dos piores indicadores sociais do Rio de Janeiro.

Devolvemos com brutalidade o que nos foi concedido com generosidade.

*

Junior Perim organizou minhas visitas ao Estácio, que resultaram em entrevistas com integrantes da escola de samba, disponíveis em links nesta coluna.

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