Marcos Augusto Gonçalves

Editor da Ilustríssima, formado em administração de empresas com mestrado em comunicação pela UFRJ. Foi editor de Opinião da Folha

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Descrição de chapéu Guerra da Ucrânia Rússia

Guerra da Ucrânia vai além de cruzada contra autocratas

Bom-mocismo democrático de Biden na política externa enfrenta contradições e fissuras

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A guerra que se seguiu à invasão da Ucrânia pela Rússia tem servido para amparar, com base num episódio brutal e objetivo, a cruzada ideológica da política externa de Joe Biden, que consiste na tentativa de embrulhar para presente a busca dos interesses econômicos e geopolíticos norte-americanos com o papel celofane das melhores intenções de defesa da democracia.

A dificuldade de conciliar a atuação dos EUA na esfera internacional com o discurso dos valores democráticos e dos direitos humanos não é novidade —o financiamento de ditaduras, a aliança estratégica com tiranos, a invasão unilateral do Iraque, a base de Guantánamo, os bombardeios que atingem populações civis e o desprezo por resoluções das Nações Unidas são fatos conhecidos.

O presidente dos EUA, Joe Biden, discursa em Vilnius, na Lituânia, depois da Cúpula da Otan - Andrew Caballero-Reynolds - 13.jul.23/AFP

Tanto quanto, diga-se, a genuína tradição democrática do país —juridicamente relativa até que se consolidassem o reconhecimento dos direitos civis para negros e a abolição das leis de segregação racial nas décadas que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial.

Faz pouco tempo, em julho passado, o jornal The New York Times, mesmo aproximando-se da posição de Pravda do liberalismo democrata, publicou uma análise de Peter Brake, o principal correspondente na Casa Branca, sobre os problemas de Biden para sustentar seu lema da "batalha da democracia contra a autocracia" como critério crível de atuação no terreno da política externa.

O título do artigo, "Biden encara sua luta pela democracia caso a caso", diz bastante sobre o argumento do autor, que lista algumas das incongruências dessa atuação seletiva, como as relações dos EUA com a Arábia Saudita e governantes autocratas, a exemplo do de Israel, para não mencionar as ambiguidades em relação à China e à Índia, entre outras.

A dramática invasão unilateral da Ucrânia levada a cabo por Putin serviu de plataforma para projetar a "doutrina", por assim dizer, de Biden, que assumiu com desembaraço o papel de paladino da democracia global e obteve o previsível apoio dos membros da expansionista Otan para fomentar uma guerra terceirizada contra a Rússia.

A disputa de interesses da política internacional, contudo, é mais complexa do que a contenda entre certo e errado ou entre o bem e o mal, que vem sendo jogada de maneira incondicional também por setores da mídia e da opinião pública de países ocidentais, inclusive de alguns, como o Brasil, distantes da arena das alianças patrocinadas por superpotências militares.

Nas regiões que já foram conhecidas como periferia do sistema e hoje estão sob o rótulo de Sul Global, as posições governamentais são mais matizadas, pois há outros objetivos em cena além dos representados por Biden e por uma Europa refém dos EUA, desprovida de iniciativa própria. Ensaia-se, como se sabe, um rearranjo do mundo unipolar que se imaginou triunfante após o fantasioso "fim da história" do pós-Muro.

Parece plausível que o conflito iniciado pela invasão russa não tenha solução militar à vista e que a aposta na queda de Putin e sua substituição por um governante amigo do Ocidente seja uma quimera. Não é improvável que se desenhe um quadro cujos rabiscos já se insinuam: a fadiga da aliança pela terceirização da guerra com o fornecimento a fundo perdido de armas a Zelenski e o surgimento de fissuras que tendem a favorecer propostas para a abertura de uma negociação mais pragmática.

"Sabe, nós não somos a Amazon", já disse, em julho, um dos mais firmes apoiadores da Ucrânia, o secretário britânico de Defesa, Ben Wallace. O recado, sobre armar o país indefinidamente, não exige muita imaginação interpretativa.

Diante dos renovados fracassos das propagandeadas ofensivas da Ucrânia, mais dissonâncias vão se fazendo ouvir na própria Europa —além daquelas, de governos como o do Brasil, que tem procurado semear, sob o escárnio de alguns, a ideia de um cessar-fogo para equacionar o conflito que prejudica a estabilidade e a economia mundiais.

O mesmo The New York Times repercutiu no domingo (27), em texto de seu correspondente em Paris, Roger Cohen, uma entrevista do ex-presidente francês Nicolás Sarkozy (2007-2012) ao Le Figaro, por ocasião do lançamento de seu livro de memórias.

Conhecido por suas posições de centro-direita, favoráveis ao livre mercado (chegou a ser chamado de "Sarko, o americano"), ele afirmou que reverter a anexação da Crimeia pela Rússia, uma das condições de Biden e Zelenski, é um pleito "ilusório", e descartou a adesão da Ucrânia à União Europeia ou à Otan, considerando que o país invadido deveria permanecer "neutro". Também insistiu que Rússia e França "precisam uma da outra" e considerou que "neste momento, os interesses da Europa não estão alinhados com os interesses norte-americanos".

Por mais que o ex-presidente seja carta fora do baralho —e que tenha enfrentado problemas com negociações consideradas suspeitas com uma companhia de seguros russa— as declarações, como observa o correspondente do Times, encontram eco em outros setores, à direita e à esquerda.

Cohen, de maneira cautelosa, parece querer contar a seus leitores americanos que mesmo no caso da Ucrânia nem todo mundo vê os EUA como os campeões do bom-mocismo democrático internacional. Diz que as vocalizações discrepantes em países aliados ganham volume impulsionadas pelo que considera o "ressentimento" de alguns com o poder americano sobre a Europa e pelas evidências de que a situação torna-se cada vez mais custosa sob vários aspectos.

Para a cientista política francesa Nicole Bacharan, ouvida pelo correspondente, "o fato de a contraofensiva não ter funcionado até agora significa uma guerra muito longa e de resultado incerto".

Ela opina que se este cenário se estender até o ano que vem, o destino do conflito poderá acabar dependendo das eleições norte-americanas. Uma perspectiva que não parece das mais auspiciosas.

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