Maria Homem

Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?".

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Maria Homem
Descrição de chapéu Mente

'Eu sou pró-vida'

Quando a gente começa a valorar a vida potencial sobre todas as outras coisas vivas existentes talvez não estejamos tão engajados na vida propriamente, mas num ideal de uma "nova vida"

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Em primeiro lugar: eu sou pró-vida. Aliás, acho muito difícil alguém dizer: "eu sou contra-vida". Quase ninguém diz, salvo alguns canalhas que de vez em quando tomam o poder e as frestas e exercitam a necropolítica.

Olha, o problema é que matou pouco. Tão morrendo! ah sinto muito. Kill and let kill. Isso pode até estar na moda, mas é exceção.

“A ilustração de Luciano Salles, publicada na Folha de São no dia 04 de julho de 2022, retrata um pai ensinando e acompanhando o filho a atirar. O menino, em primeiro plano, usa um moletom verde, tem pele clara e cabelos alaranjados. Segura uma grande espingarda toda vermelha. O pai, logo atrás, o ampara com a mão direita sobre o ombro. O pai usa uma blusa marrom, tem a pele de cor amarela e olha para onde o filho aponta a espingarda. O homem usa um boné de aba azul, frente branca e com a parte de trás vermelha. Na frente branca há um círculo vermelho com os dizeres em azul “PRO-LIFE” que, em tradução livre do inglês, significa “a favor da vida”. O escrito está com a letra L descolando, somente sendo sustentado pela final da letra L e fica com a leitura como “PRO LIE”, que em tradução livre significa, “a favor da mentira”.
Luciano Salles

Temos um profundo apreço por tudo que é vivo. Respeitamos, afinal, o largo enigma da vida. A questão é a escala de valor que construímos na mente —e no grupinho— para ranquear o que se considera que tem direito à vida.

A construção de valor se faz a partir da trama de ideais e identificações inconscientes da nossa história. Buscamos uma matematização em que algumas coisas têm mais direito à vida que as demais, e portanto outras, mais direito à morte. Às vezes, não há como todos viverem a mesma quantidade (e qualidade) de vida simultaneamente.

Por exemplo, até há pouco fazíamos a seguinte aritmética: tem a vida do feto e a vida da mãe. Com essa gravidez a vida da mãe corre risco. Então a gente preserva a vida da mãe e sacrifica a vida potencial do feto. O feto é uma vida em potência. A mãe é uma vida em ato e com a potência de criar outras vidas. Então, devemos escolher a vida real da mãe. Ainda mais que, se a mãe morrer no parto, a vida potencial do feto já nasce sob o signo da perda.

Ganha força um movimento, no entanto, que se sente impelido a defender a vida potencial sobre todas as coisas.

A possibilidade de uma nova vida é tida como um maravilhamento a ser preservado a qualquer custo. Mesmo que não haja a mínima condição de se acolher aquela vida. Não tem desejo, não tem espaço, não tem tempo, não tem casa, berço, tranquilidade, atenção, maturidade.

O problema é que seria fundamental para a saúde psíquica e material de cada nova vida humana que ela fosse recebida com o máximo de condições. Aviso aos navegantes: mesmo assim é difícil e criamos neuroses. Sem condições, você imagina. Às vezes não tem nem um corpo apto a reproduzir dignamente a vida, como o da menina de uns dez anos, franzina e assustada, que corria para se esconder com sua boneca a cada vez que aquele estranho ser saído de seu corpo chorava. Aí talvez se criem psicoses, vícios, mendicâncias e demais formas extremas de sofrimento.

Quando a gente começa a valorar a vida potencial sobre todas as outras coisas vivas existentes talvez não estejamos tão engajados na vida propriamente, mas num ideal de uma "nova vida". Uma vida nova, pura e mágica e todas essas palavras que na verdade mostram nosso apego idealista a um conceito de vida. Não estamos nem aí para as pessoas reais, as mães, os pais, os com muitos filhos, os sem filhos, os vivos.

Defender a vida do feto sobre todas as coisas é apego à ideia da potência de tudo que poderia advir, como se eu de fato estivesse me identificando com aquela semente que pode vir a ser algo —algo melhor do que o mundo miserável e falido que vejo ao meu redor, e de preferência algo bem melhor do que a vida tépida e medíocre que eu pude construir para mim.

Sou pró-vida e sempre serei. Preciso me agarrar à sagrada ideia de potência.

E, por favor, tirem diante dos meus olhos toda essa gente feia, chata, pobre, desequilibrada, drogada, burra, delinquente, bandida, selvagem que se amontoa nas ruas e nos matos. E, assim fazendo, ainda sou superior a todos os outros que não se colocam do lado da vida e do bem.

Você é pró-vida de quem? E pró-morte de quem?

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