Marilene Felinto

Autora de "Mulher Feita e Outros Contos" e "As Mulheres de Tijucopapo". Mantém o site marilenefelinto.com.br

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Marilene Felinto

Fome e farda

Ligação de menino para o 190 em busca da garantia do direito fundamental à alimentação é pura calamidade

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A primeira fome é daquele menino de 11 anos que, em 2 de agosto último, ligou para o 190 da Polícia Militar de Minas Gerais pedindo ajuda porque sua família não tinha o que comer —e cujo telefonema produziu um curioso paradoxo no teatro da proteção social e da segurança pública brasileira.

O fato de o menino mineiro (Miguel) ter apelado à PM, a mais letal de nossas instituições de Estado, em busca de garantia do direito humano fundamental à alimentação, em busca de garantia de vida, beira o tragicômico, não fosse pura calamidade.

Miguel Barros, 11, que ligou para o 190 ao ver a mãe chorando por não ter comida para oferecer aos filhos - Douglas Magno - 5.ago.22/Folhapress

Ora, a mãe do menino, desempregada e vivendo do auxílio federal mesquinho, chorava num canto da casa, porque, havia dias, só tinha fubá e farinha para oferecer aos seis filhos (de idades entre 3 e 17 anos). Quem, quando criança, presenciou um choro de mãe numa situação de extrema pobreza e indignidade como essa sabe a revolta que isso provoca.

Que a família em questão seja de gente negra já é ponto banal na circularidade perversa que não se rompe no país racista e classista. A história se repete como estrutura —como aponta Luiz Eduardo Soares—, atravessa gerações.

Sim, porque —e a título de ilustração— a segunda fome ocorreu há 83 anos, fim dos anos de 1930, no sertão da Paraíba, por onde a família de minha mãe, retirantes da seca, zanzava em busca do que comer e beber, acontecimento que desembocaria na dramática orfandade dela.

E, sim, porque a terceira fome é a minha, meados dos anos de 1960, uma xícara na mão, minha irmã mais velha e eu indo pedir aos vizinhos um tanto de arroz, outro de feijão, que minha mãe não tinha mais o que dar de comer aos cinco filhos pequenos. Passávamos, às vezes, à farinha de mandioca com açúcar.

Quase um século de fome, na somatória desses três episódios. Notórios a solidão, a desolação, o abandono (pelo Estado e pelos homens) de que são vítimas as mulheres negras pobres, as mães, nessas histórias.

Contudo, o artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de que o Brasil é signatário, define que Miguel e sua família têm direito, sim, "a um padrão de vida capaz de assegurar saúde, bem-estar, inclusive alimentação", entre outros itens indispensáveis, "em caso de desemprego, doença [...] ou outros casos de perda dos meios de subsistência". E diz mais: que "a maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais".

Mas voltemos ao paradoxo. O menino mineiro telefonou para a PM como quem ligasse para uma autoridade de governo —a única que ele provavelmente conhece em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, a apenas 18 quilômetros dessa capital— responsável pela segurança alimentar de sua família.

Miguel recorreu à farda sinistra e violenta que, em territórios de pobreza como as favelas e periferias onde ele vive, reserva aos meninos e jovens negros nada além de humilhação, pancada, bala de revólver e morte.

O Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgado neste ano mostra que mortes de pessoas negras decorrentes de ações policiais aumentaram entre 2020 e 2021 no país. Pretos e pardos foram 84,1% das vítimas da letalidade policial. Entre todos os mortos, 65,2% eram jovens entre 18 e 29 anos —adolescentes de 12 a 17 anos somam 8,7% do total.

Pois, então, daqui a pouco Miguel terá 12 anos e, logo depois, será jovem e entrará na categoria de negro suspeito a ser abordado pela mesma força policial —também negra— que atendeu à ocorrência de seu chamado ao 190.

A cobertura midiática desse caso, espetaculosa e piegas, não se preocupou em tratar da outra face da ironia: a origem comum de ambos, da fome e da farda, do menino e do policial negro que deu depoimento a uma emissora de TV e disse nunca ter se deparado com um caso de fome desses nos seus 24 anos de polícia.

O batalhão policial comoveu-se, humanizou-se momentaneamente, montou uma rede de ajuda à família de Santa Luzia. Que o destino de Miguel não seja como o de outros tantos jovens negros vítimas de espancamento e morte por forças policiais. Exemplo recente: o de Gabriel Marques Cavalheiro, de 18 anos, abordado em 12 de agosto e supostamente abatido pela Brigada Militar do Rio Grande do Sul, o corpo encontrado boiando num açude.

O projeto de nação igualitária que instituiu o Fome Zero e que teria salvado da fome a família mineira foi enterrado pelo necrogoverno de Jair Bolsonaro. As brigadas fascistas que atuam em prol do bolsonarismo são refratárias a parâmetros de legalidade ou institucionalidade, como diz Soares sobre a PM.

O policial militar não tende a se ver como funcionário público a serviço da cidadania, afirma o sociólogo, não se reconhece "nas instituições, nem nas leis, nem na República, seja como ideia, seja como valor, e muito menos como prática". Por isso mesmo, todo cuidado é pouco, corajoso Miguel.

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