Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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Mariliz Pereira Jorge

Quer que sintam sua falta? Morra

Aliviamos o passado de gente que morre, felizmente; a condescendência salva reputações

Flerto com a morte de vez em quando. Não que eu queira morrer, é apenas curiosidade de saber o que falariam, se seguiria a lógica comum de que todo mundo quando morre é canonizado, despido de seus pecados, jamais lembrado por seus defeitos. A não ser que você tenha sido um peste, um ser desprezível, como ouvi falarem de um vivo ainda ontem.

Queria encostar no caixão e fumar um cigarro (não fumo, mas sempre quis dizer “vou ali fumar um cigarrinho”. Não imagino melhor ocasião). Morro mais um pouco enquanto recebo os convidados para essa despedida, para ouvir baixinho o que falariam ali bem perto do meu ouvido sem que outros pudessem testemunhar. Seriam apenas palavras doces de saudade, lamúrias de tristeza ou alguém diria quase sussurrando verdades doídas mesmo aos ouvidos de um morto, mágoas jamais pronunciadas em vida?

Mãos em volta de caixão
"Morro mais um pouco enquanto recebo os convidados para essa despedida, para ouvir baixinho o que falariam ali bem perto do meu ouvido sem que outros pudessem testemunhar" - Zanone Fraissat/Folhapress

Imagino os inúmeros textos póstumos no Facebook, com declarações de amor, lembranças de como eu era divertida e de como o mundo ficará menos alegre, afinal, lá vai uma sagitariana. Muitas pessoas queridas e outras com quem não tinha muita intimidade, mas que adoram tirar casquinha de morto, quando se trata de alguém bem quisto como gosto de imaginar ser. Hoje, ninguém mais precisa ir a velórios, basta um tweet, uma foto no Insta, um postzinho no Face para que as condolências tenham sido prestadas. Está valendo. No meu aniversário, contabilizei umas 700 mensagens. Se na ocasião de minha morte menos gente se manifestar é porque, em vida, não agradei tanto quanto gostaria.

Tenho esperança de que as boas lembranças sejam mais marcantes do que as más e que após a cerimônia de cremação, todos terminem em algum bar, embriagados, dizendo como me amam, pedindo saideiras eternas, como sempre gostei.

Aliviamos o passado de gente que morre, felizmente. Filtramos as lembranças para que só nos visitem a memória as que nos foram melhores. A condescendência salva reputações e deixa até mesmo mais humanos aqueles que por aqui foram meio desalmados. Até porque não ganhamos nada falando mal de morto.

Pude experimentar um pouco essa sensação de morte e de despedida, sábado, quando escrevi meu último texto para o caderno Esporte, da Folha. Acostumada a levar tanta cacetada dos leitores, fiquei surpresa que muitos manifestaram sua indignação com o meu afastamento. Alguns acharam que deixo o jornal, mas paro de escrever apenas sobre esportes, aos sábados.

De repente eu era “uma das melhores colunistas do jornal”, “divertida”, “inteligente”, “sem papas na língua”, “pena refinada”. A Folha foi acusada de “pisar na bola”, recebeu os pêsames, leitores ameaçaram cancelar a assinatura, também em mensagens recebidas em minhas redes sociais.

Por essas e outras pensei em como economizamos nos elogios, em dizer que temos saudade, em falar coisas agradáveis para pessoas que gostamos ou que apenas temos afinidades. Parece mais fácil externar descontentamento e, quase sempre, de forma agressiva. A gente fica tão acostumado a levar bordoada, que se surpreende com reconhecimento e carinho. Fiquei chocada (positivamente) que tantos leitores tenham se manifestado, mas que só agora revelaram seu apreço. Como aquele amor nunca correspondido que só ganha atenção quando o outro vai embora. 

Quem não gosta de se sentir querido? E, olha que maravilha, ainda estar vivo. Mas o melhor mesmo foi ler o comentário de alguém que, dias atrás, me chamou de “quenga”, porque não gostou do que escrevi, mas dessa vez lamentou minha saída e “confessou” que nem sempre concordava comigo, mas gostava de ler “os (colunistas) polêmicos”. De quenga passei a polêmica. Um avanço.

E claro, teve um que disse “já vai tarde”. Exatamente o que imagino que vai acontecer no dia que, de fato, eu for dessa para melhor —​ou pior. Alguém certamente vai sussurrar perto do caixão, escrever num post ou apenas pensar que não farei falta alguma. Não tem como agradar todo mundo, mas a gente segue tentando. Agora é respirar e continuar aqui no mundo dos vivos. Todas às terças e quintas. Como eu disse, a gente se vê por aqui.

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