Vinicius Mota

Secretário de Redação da Folha, foi editor de Opinião. É mestre em sociologia pela USP.

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Vinicius Mota

Quem aplaude os métodos dos caminhoneiros não gosta de democracia

Pílulas anticrise ou como evitar que um caminhão atropele o raciocínio

Caminhoneiros fazem buzinaço em frente ao Planalto
Caminhoneiros fazem buzinaço em frente ao Palácio do Planalto por aprovação de reivindicações antes do pronunciamento do presidente - Pedro Ladeira-27.mai.18/Folhapress

Enfrento abaixo, de modo sucinto, alguns temas que surgiram com a eclosão da grande sabotagem nacional praticada por caminhoneiros e empresários do transporte.

A matriz de transportes dependente de caminhões não favoreceu a crise.

Em qualquer lugar do mundo, o caminhão é o elo mais frequente entre o varejista, que abastece os consumidores, e o seu fornecedor. A gasolina não chega aos postos de trem nem de navio. A batata, o tomate e a carne não viajam de “alimentoduto” até os supermercados. Precisam em geral de veículos de carga que trafegam pelas estradas e pelas ruas. Na França, paraíso ferroviário, greves de caminhoneiros sufocam o abastecimento de combustível e produzem as mesmas imagens de filas nos postos que vimos aqui.

Também não é uma locomotiva que vai buscar o leite nas fazendas ou entregar os insumos para a criação dos frangos nas granjas. São basicamente caminhões em qualquer parte do planeta.

A matriz de transportes brasileira é excessivamente dependente de caminhões nos grandes troncos de escoamento e nas grandes distâncias. Isso cobra um preço em termos de eficiência econômica, mas não torna o consumidor brasileiro mais vulnerável a paralisações.

Na verdade, se essas operações fossem mais concentradas em ferrovias e hidrovias, seria muito mais fácil meia dúzia de sindicatos pararem o Brasil. Trens e navios são poucos e trafegam por poucas vias. Coordenar centenas de milhares de caminhoneiros pelas vias capilarizadas deste país continental é bem mais difícil.

 Floresce no Brasil uma espécie de anarquismo de direita.

Há pouca coordenação nessa revolta, que se alimenta do clamor difuso e mal fundamentado pelo restabelecimento de um ideal de ordem e hierarquia. Mas essa restauração só viria pela destruição violenta e súbita de todos os que estão aí exercendo postos de poder.

Não se engane, leitor moderado de centro-esquerda ou centro-direita, este é um movimento da direita autêntica, talvez o maior da história do Brasil urbano e democrático. A leitura apressada do quadro pode levar a atitudes equivocadas como a dos petroleiros, que anunciam uma greve supondo-a favorável ao petismo. Estão apenas colocando azeitona na empada dos brucutus.

Os anarquistas anticapitalistas do passado cultivavam a ideia de que uma greve geral revolucionária, com adesão absoluta, derrubaria o sistema num só golpe. Eis que o seu negativo de direita, no Brasil mal instruído do século 21, aparece aboletado na cabine de um caminhão.

 Este presidencialismo e a irresponsabilidade dos poderosos têm-nos custado muito.

Governos fracos, estabelece uma regra universal, são presas doces para grupos que saqueiam as rendas da maioria desorganizada. No contexto brasileiro desde junho de 2013, o presidencialismo, ao dificultar a reciclagem nas urnas de lideranças tornadas inertes, tem exposto carcaças de mandatários aos predadores por tempo demasiado.

Não é razão suficiente para trocar o regime pelo parlamentarismo, por exemplo. Uma transição desse tipo acarretaria mudanças tectônicas talvez contraproducentes. Mas é preciso debater mecanismos que facilitem a resolução democrática de impasses, incluindo na equação o voto popular. As raízes fiscais da instabilidade política são profundas e estão se fortalecendo. Precisamos nos preparar para no mínimo mais uma década de fortes emoções.

A despeito disso, ajudaria se as autoridades evitassem o cinismo e cumprissem o seu papel. Em junho do ano passado, o Tribunal Superior Eleitoral fechou os olhos diante de toneladas de provas de abuso do poder econômico nas eleições de 2014. Manteve o cadáver de Temer no Planalto, a alimentar as hienas.

Ainda longe do cataclismo, a sociedade tem capacidade quase infinita de se adaptar às restrições enquanto combate os chantagistas.

A partir de 5 de setembro de 1940 e por praticamente 76 noites consecutivas, Londres foi maciçamente bombardeada pela Força Aérea alemã. Foi a consequência da opção do premiê Winston Churchill por combater Hitler, em vez de tentar selar um armistício com o ditador.

Os londrinos se adaptaram à rotina dos massacres aéreos não como ato de resignação diante de um destino cruel e inevitável. Aceitaram pagar esse custo altíssimo em nome da luta contra a tirania e a opressão. Deu certo, e a virtude demonstrada pelos britânicos não seria menor em caso de derrota.

O exemplo extremo, muito distante do nosso aqui, serve para nos lembrar de duas coisas: é imensa a capacidade de adaptação das sociedades em situação de cerco; privar-se de bens e serviços habituais pode mobilizar a população contra aqueles que a estão fazendo sofrer.

Caminhoneiros e empresários de transporte adotaram a via dos piratas e dos saqueadores do passado. Sitiam cidades e estrangulam o fornecimento de bens essenciais. Provocam sofrimento em dezenas de milhões de pessoas para arrancar delas mesmas, por meio do resgate bilionário chancelado pelo governo, a solução para seus problemas.

Se você gosta disso, se simpatiza com os meios empregados pelos bucaneiros sobre rodas, então está flertando com a tirania. Bate palmas para a lógica do torturador. Você não gosta da democracia.

Se você, como eu, detesta truculência e chantagem, então talvez devesse exigir de seus representantes que resistam às investidas do protofascismo.

É uma luta vã, em larga medida. Não temos Churchill. Nossas tristes lideranças, os chefes do Planalto, da Câmara e do Senado, já entregaram tudo para os alemães. E os alemães, como todos os tiranetes sádicos, ainda não ficaram satisfeitos.

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