Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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Mariliz Pereira Jorge

A Regra do Avião

Devemos ter consciência dos privilégios, mas nos permitir a sofrer

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“Há crianças com fome na África”, repete Arabellla, a personagem de Michaela Coel, na série I May Destroy You (HBO). Baixinho, para ela mesma, entoa como um mantra a tragédia alheia, como se um sofrimento maior pudesse aliviar o seu próprio, a violência sexual a qual foi submetida.

Passei a usar do mesmo expediente nesses meses de confinamento. Tem gente muito pior do que eu, não posso reclamar, durmo numa cama quentinha, tem comida na geladeira, ninguém da minha família morreu e nem perdi todos os meus trabalhos.

Mulher reclusa em sala escura
Mulher reclusa em sala - stock.adobe.com

E sempre que ficava abalada pelo isolamento, pelos mortos pela Covid, pela falta de ministro da Saúde, pelo presidente ignóbil, pelo tédio, pelas incertezas do futuro, pela saudade dos meus pais, da vida e da velha rotina, pela falta de vento na cara, eu me sentia péssima por me sentir mal, porque tem gente em situação de verdade lamentável.

Já escrevi algumas vezes que a maior parte da população apenas luta para sobreviver à pandemia enquanto a classe média brinca de fazer pão ao mesmo tempo em que discute em lives se seremos melhores humanos depois que tudo passar. Não seremos.

Afirmo sem hesitação desde a primeira semana em que nos confinamos em casa. E confirmei isso ao não conseguir sair da cama um dia desses, não por ela ser macia e cheirosa, mas porque meu corpo parecia mais pesado do que consegui carregar. Emburaquei. E me senti culpada e fiquei ainda pior pela culpa, por não ser capaz de reagir e por pensar o tempo todo que tem gente com razões mais palpáveis para se deprimir. Tentei lavar um tanque de roupa, recomendado por quem acha que depressão é frescura e se resolve com trabalho braçal, boletos para pagar e força de vontade. Emendei uma faxina, mas acabei de volta aos braços do psicanalista, dizendo amém à indústria farmacêutica.

Três semanas afastada do trabalho por recomendação médica. Trancada em casa, no mesmo lugar onde me senti aprisionada e sem controle da vida. Muito repouso, livros e séries bem leves, um pouco de sol todos os dias e atividade física. Nada que muita endorfina e serotonina não resolvessem, até porque tarja preta não faz milagre. O mais importante: sem notícias e redes sociais.

Foram duas as constatações. A primeira é de que não apenas eu, mas todos estamos viciados nessa série de mau gosto protagonizada pelo presidente da República. Não bastasse a desgraça de uma pandemia, adoecemos a cada dia com esse desgoverno.

Estamos viciados nos episódios de estupidez, não perdemos nenhum novo capítulo e queremos dar opinião sobre tudo. Já abro o Twitter pela manhã para saber quem iremos odiar, ainda que seja alguém que compartilhe os mesmos ideais de mundo. Talvez o meu maior medo é que tenha chegado a minha vez de ser cancelada. De novo.

A segunda observação é que podemos, e devemos, ser socialmente engajados, ter consciência de nossos privilégios e mesmo assim nos permitir a sofrer um tantinho, às vezes um tantão, porque o mundo virou de cabeça para baixo.

Agora que consegui tirar a cabeça para fora da lama levo comigo a regra da máscara do avião, que ouvi de uma amiga. Apesar de toda cara de filosofia de botequim tem sua serventia. Numa emergência (e o que a gente está vivendo não deixa de ser uma emergência), coloque a máscara antes em você para só então conseguir ajudar os outros, de verdade.

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