Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV.

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Mariliz Pereira Jorge

Fui monitorada pela Abin Paralela?

Até hoje tenho sobressaltos quando leitores me abordam na rua, no bar, no bloco de Carnaval

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Não sei exatamente quantas vezes fui atacada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, mas não é exclusividade minha. Durante sua gestão, mulheres jornalistas foram seu alvo preferido. No Twitter, por exemplo, ele sugeriu que eu seria "genocida" por ter celebrado a descriminalização do aborto na Argentina e jogou a militância para cima. Mas foi depois de uma daquelas famigeradas lives que as coisas ficaram mais sérias e tive que fazer mais do que simplesmente fechar os comentários das minhas redes para não ler mensagens agressivas. Fiquei dois meses sem sair de casa, sozinha.

Numa transmissão em meados de março de 2021, o basculho, ignóbil, incompetente, déspota, velhaco, boçal, seboso, pequi roído, do ex-mandatário não gostou de eu tê-lo chamado exatamente dessas coisas e algumas outras mais e foi para a internet todo indignado. Para quem não se lembra, naquela semana, circulou a notícia de que o influenciador Felipe Neto era investigado por ter chamado Bolsonaro de "genocida". Na mesma situação estava um professor de Palmas (TO), responsável pela maravilha de outdoor que dizia que Bolsonaro não valia um "pequi roído", expressão da região para alguém que não vale nada. Essa eu levei para a vida. Experimente usar o xingamento, ainda que pelas costas. Satisfatório demais.

Outdoor em Palmas (TO), em agosto de 2020 - Reprodução

Como vivemos numa democracia, achei por bem fazer uso da liberdade de expressão e exercer outro direito, o da desobediência civil, tão bem descrito por Henry David Thoreau, sobre a nossa obrigação moral de desafiar governos autoritários. Não pode chamar de "genocida"? E de "pequi roído"? Pois bem, temos algumas outras ideias. Não foi um texto cheio de xingamentos, como definiram os apoiadores do então presidente e o próprio, foi um protesto político contra a tirania que o bronco, opressor, tapado, asqueroso, parasita ensaiava institucionalizar no país. O texto publicado neste jornal acabou sendo replicado milhares de vezes, virou música, poema, foi impresso em canecas e camisetas, ganhou versões regionais e foi traduzido em outros idiomas. Foi a forma de parte da sociedade sinalizar ao embuste que não aceitaria censura e intimidação.

Mas, diferentemente de outras vezes em que tive que lidar com muito machão de internet, que rosna, mas não morde, chegaram a mim informações de que um grupo muito próximo da Familícia tinha todos os meus dados pessoais, incluindo os últimos quatro endereços, nome dos gatos e minha rotina de braçadas no mar de Copacabana. Há muito não me abalo com ameaças, mas aquela situação, comprovada por meio de prints de conversas de um grupo de Telegram, trouxe sentimentos que eu ainda não tinha experimentado.

Quero registrar que tive todo o apoio da Direção da Folha, que me ofereceu não apenas orientações sobre o dia a dia, o que incluía um punhado de cuidados e restrições, mas a opção de sair da cidade por um tempo. Foram dois meses sem ir ao supermercado na esquina sem companhia, abandonei os passeios de bicicleta e a natação, as únicas possibilidades de sair de casa numa época em que o Brasil registrava quase 4.000 mortes por Covid diariamente. Grande parte pelo descaso de Bolsonaro e pela incompetência do seu governo.

Não sei se estou na lista de cerca de 1.800 políticos, advogados, ministros do STF, jornalistas monitorados pelo sistema de espionagem comprado pela Abin e usado de forma criminosa contra cidadão brasileiros, cerceados de seu direito à privacidade e de liberdade de locomoção. Os apoiadores de Bolsonaro não compreendem a gravidade desse episódio que feriu não apenas a Constituição, furtada no dia 8 de janeiro, mas a democracia.

O final do meu castigo forçado foi o mesmo de tantas pessoas atacadas pela extrema direita. No tal grupo que planejava uma vingança por eu ter dito que o basculho era um basculho, onde fui xingada de adjetivos indizíveis, meu nome começou a perder relevância até que sumiu. "Você saiu do radar", escreveu meu informante, infiltrado no grupelho. Fui substituída por outro ou outros "inimigos", seguindo a paranoia bolsonarista de perseguição, a síndrome do pequeno poder que embalou os extremistas.

Enfim, resgatei minha independência, mas até hoje passo por sobressaltos quando leitores me abordam nas ruas, no bar, dentro de um avião, no meio de um bloco de Carnaval. É uma sombra que não se dissipa totalmente. Se eu acho que corri mesmo algum perigo? Hoje tenho certeza de que não e, na época, não acreditava que partisse algo do entorno de "inviajável", para usar uma expressão quentinha das redes. No fundo, é um pessoal covarde. O medo real era do guarda da esquina, como bem apontou o ex-vice-presidente Pedro Aleixo, em 1968. A única coisa que Jair Bolsonaro fez com maestria foi ter chocado milhares de milicianos dispostos a qualquer coisa.

Vimos Jair Bolsonaro minar a democracia diariamente. Colocou tanques nas ruas, numa tentativa de intimidação, atacou o STF, o Congresso, a Constituição, planejou um golpe de Estado. Fez mais, facilitou o armamento da população, rejeitou sistematicamente as regras do jogo político. Negou a legitimidade de adversários políticos, tentou, sim, reduzir a liberdade de seus críticos. Uma das formas foi encorajar a violência e asfixiar a imprensa. Sou testemunha disso.

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