Marina Izidro

É jornalista e vive em Londres. Cobriu seis Olimpíadas, Copa e Champions. Mestre e professora de jornalismo esportivo na St Mary’s University

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Marina Izidro

O que o menino refugiado ucraniano e a jornalista brasileira têm em comum

Andrii e sua mãe, Maryna, são refugiados na Inglaterra

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"Eu sei quem é Pelé", Andrii me disse. "Sério?" Perguntei. "Sim, ele ganhou três Copas do Mundo. Mas ele morreu recentemente." Andrii tem nove anos e é refugiado na Inglaterra, vítima da guerra na Ucrânia.

Estamos no intervalo da gravação de uma reportagem sobre o programa do governo britânico em que famílias hospedam ucranianos em suas casas. Andrii e a mãe, Maryna, fugiram da Ucrânia em março passado.

Depois de meses morando com uma senhora na Inglaterra, o acordo expirou e mãe e filho quase ficaram sem teto. Graças à ajuda de outra inglesa, Maryna conseguiu alugar um pequeno apartamento. Na sala da casa nova, que tem dois sofás antigos e uma pequena mesa de madeira, o menino pega uma bola, sai driblando sozinho e, após falar de Pelé, continua: "Também conheço Roberto Carlos, Ronaldinho, Ronaldo. Adoro o Neymar." E segue: "Na Copa torci pela Argentina, pelo Brasil e pela Inglaterra. O Brasil fez aquele gol!" –ele abre um sorriso e imita o voleio de Richarlison contra a Sérvia.

O voleio de Richarlison contra a Sérvia, que o pequeno Andrii gosta de imitar - Instagram/richarlison

O que uma jornalista brasileira e uma criança ucraniana que nunca se viram e vêm de mundos totalmente diferentes poderiam ter em comum —além do fato de eu e a mãe dele termos o mesmo nome, o meu com i, o dela com y? O esporte. É impressionante como ele une instantaneamente, cria vínculos, traz um pouco de distração para alguém que, tão jovem, já viveu o trauma de ter que escapar às pressas de seu país por causa de uma guerra que talvez nem entenda direito.

Andrii é educado e simpático. Minha xará é médica, mas não pode exercer a profissão por aqui com o diploma da Ucrânia. Brincamos sobre nossos nomes. Ela conta que, assim que chegaram ao Reino Unido, Andrii conseguiu lugar na escola, se enturmou, foi elogiado pelas professoras. Estuda em dobro porque acompanha aulas da escola ucraniana pela internet –menos quando a guerra deixa o lugar sem luz.

Crianças pedem o fim da guerra na Ucrânia durante partida entre o AEK Larnaca, de Chipre, e o Dínamo de Kiev, da Ucrânia, em Larnaca - 27.out.22/AFP

Ele termina o dever de casa, corre até o quarto e traz uma camisa 10, uniforme da escolinha onde joga. "Já marquei 55 gols", diz, orgulhoso.

Pergunto se gosta de algum outro esporte. "Capoeira!", diz a mãe. Nessa hora, os olhos que brilham são os meus. Treinei por sete anos quando era adolescente e sou apaixonada. Andrii me mostra vídeos lindos de um mar de crianças de branco jogando capoeira em um dia de sol em um parque na Ucrânia, inclusive ele.

Como a vida era ensolarada antes da guerra. Descobrimos que éramos do mesmo grupo, Senzala. Que mundo pequeno e enorme ao mesmo tempo.

"Meu aniversário é daqui a dois dias", disse, ainda com a bola nos pés. Não perguntei se teria bolo ou festa. Talvez não haja dinheiro. Queria fazer tantas perguntas, mas nunca ousaria. Onde estão os amiguinhos da Ucrânia? O parque onde jogava capoeira ainda existe? E seus brinquedos, sua casa? Bom, ele está com saúde, tem casa com aquecimento, comida fresca, vai à escola, pratica esportes, está junto da mãe. Quantas crianças não têm a mesma sorte?

Maryna explica que os pais dela estão na Ucrânia e teme pela vida deles todos os dias (o pai do menino não é mencionado). Quando a guerra acabar vão voltar, porque "o país vai precisar de nós para ser reconstruído".

Como o mundo seria melhor se focássemos no que nos une, não no que teoricamente nos separa.

Me despeço esperando que Andrii e Maryna consigam voltar em breve para a vida que hoje só veem através dos vídeos do celular.

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