Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti
Descrição de chapéu

Bizarra, grotesca, sublime globalização

Das miragens da arte à estetização da morte, a trajetória de Werner Herzog

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

A mostra de Werner Herzog, em São Paulo, não dá conta da sua obra. Nem poderia. Ele fez mais de 60 filmes. Escreveu livros de poesia, ensaios e viagens. Encenou dezenas de óperas. Deu centenas de entrevistas que mais embaçam do que explicam sua arte. Sua obra vai do bizarro ao grotesco e passa pelo sublime.

Entre os 18 filmes, em cartaz até quarta-feira (13), há a criatividade de "Também Anões Começam Pequenos". A trilogia que tangencia o Brasil: "Aguirre", "Fitzcarraldo" e "Cobra Verde". O abominável "Lições das Trevas". O magnífico "Fata Morgana".

Herzog deu adeus à vida urbana contemporânea. Aos namoricos. Às famílias. Às ansiedades da classe média —aos dramas habituais do cinema. Saiu da Alemanha, tornou-se pós-nacional e anteviu o multiculturalismo. Compôs odes aos alquebrados. Aos maníacos. Aos primitivos. Aos delirantes. Aos deserdados da civilização.

Sua atitude contracultural resvala o esotérico, o alternativo, até o new age. Com o semblante macilento de quem curte o som do Popol Vuh, autorreferente e debochado ("o cinema é uma arte para iletrados"), é um profeta do relativismo cultural e da volta à natureza.

Seus personagens são cegos, capengas, surdos. Um convive com ursos. Outro passou a infância encarcerado. O terceiro é autista. Meninos disparam metralhadoras. São aborígenes australianos, misquitos ameríndios, wodaabe africanos. As mulheres quase não têm voz.

Os tipos aberrantes perambulam por planícies antárticas. Desertos africanos. Flamejantes campos de petróleo. Desfiladeiros amazônicos. Vulcões vomitando lava. Cavernas antediluvianas. Colinas do Cáucaso. Arranham o fundo de mares silenciosos.

A verdade, para Herzog, vem de gente autêntica e à margem —de gente que é genuína porque está nos arrabaldes da civilização burguesa. A verdade brota da combustão de pessoas puras em panoramas exóticos. O místico e o irracional são modos de expressão. A ciência, ilusão.

O correlato estético do culto da autenticidade vem do romantismo alemão. Herzog se identifica com imagens de Caspar David Friedrich. Como na tela "Caminhante sobre o Mar de Névoa", ele está voltado para a natureza. Solitário, dá as costas à sociedade.

A ideia de que a arte é êxtase tanto fomenta iluminações como acolhe a manipulação. No primeiro caso está "Fata Morgana", de 1971, raro exemplar de cinema-poesia (um outro é "La Jetée", de Chris Marker, se bem que narrativo).

O título do filme se refere à irmã do Rei Arthur das lendas de Camelot. A fada Morgana tinha o poder de mudar as aparências, mas não a realidade. A expressão designa também a ilusão de ótica provocada pela refração do calor —como o esfumaçamento acima do asfalto quente.

Ou seja, "Fata Morgana" significa miragem. O filme começa com oito aterrissagens de avião no deserto. Desliza por dunas do Saara. Acaricia carcaças de jatos militares e cadáveres de bichos. Recita textos sagrados dos maias. Toca o Mozart da "Missa da Coroação".

"Fata Morgana" é um fluxo de pausas. O mundo se mescla com o paraíso e juntos geram miragens que superam a morte —as da arte. É como diz um personagem de outro filme de Herzog, "Onde Sonham as Formigas Verdes": a civilização destrói tudo, inclusive a própria civilização.

A iluminação vira lusco-fusco em "Aguirre, a Cólera dos Deuses", de 1972. Klaus Kinski dá vida a um Ricardo 3º nos trópicos. Ele encarna um conquistador espanhol que buscou El Dorado e ensandeceu na Amazônia.

A primeira sequência acompanha europeus liliputianos descendo uma formidável encosta até serem engolfados pelo inferno vegetal. Na última, Aguirre alucina numa jangada em frangalhos, em meio a dezenas de macacos.

Ele é levado pelo rio do tempo, e todavia não deságua no abismo da história. Embora poderosas, as cenas não servem de metáfora para a colonização. Como em "Coração das Trevas", de Conrad, o foco narrativo é dos civilizados. Os índios sequer são vítimas.

Em "Cobra Verde", de 1987, sobre um brasileiro (Kinski de novo) que captura escravos na África, a manipulação se entroniza: Herzog saboreia a sensualidade de meninas negras. As imagens, voyeurísticas e racistas, dissipam o sentido da expansão europeia.

Em "Lições da Escuridão", de 1992, o sentido some de vez. Feito no fim da Guerra do Kuwait, o filme nem menciona Saddam e Bush. A miragem da arte se esvanece e a morte é estetizada. Adeus, poesia, anões, selvagens. O romantismo melancólico de Herzog agora soleniza a civilização.

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