Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti
Descrição de chapéu

Frase longa, vida breve

Na maior sentença de Proust, a permanência do passado no presente

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“À Procura do Tempo Perdido”, disseram os seus primeiros críticos, tem frases demasiado longas. A ressalva prescreveu em 1983, quando Etienne Brunet publicou “Le Vocabulaire de Proust” (Skaltine-Champion, 1.644 págs.). Com um computador, ele mostrou que as frases do romance têm em média cinco linhas. Só 20% delas ultrapassam dez linhas.

A queixa sobre o tamanho das sentenças foi trocada por muxoxos quanto à sintaxe e à pontuação. Reclamou-se das interpolações e das cascatas de orações subordinadas. E os organizadores da primeira edição canônica, a Pléiade, falaram até que Proust não sabia pontuar.

Invocaram-se razões biográficas para justificar sua escrita: asmático, ele escreveria como quem precisa de oxigênio. O comentário é inaferível; logo, tolo. Mas é verdade que seu estilo —cheio de parênteses, travessões, diálogos e digressões— diverge do francês clássico e do corriqueiro. 

 
Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

E há de fato frases intermináveis. A mais longa está no quinto volume, “A Prisioneira”. Tem 440 palavras no original, e 388 em português —e é mostrada aqui numa nova tradução. Na horizontal, ela se estenderia por quase quatro metros; daria 17 voltas na base de uma garrafa de vinho.

Ela ocorre na narração de um sarau no salão dos Verdurin, um casal de burgueses arrivistas, na sua mansão no cais Conti. Nela está o “pequeno clã de fiéis” que frequenta suas festas há anos —seja na sua antiga casa, na rua Montalivet, ou no castelo de La Raspelière.

Um dos habitués é Brichot, pedante professor da Sorbonne. Ele nota a presença de tapetes, móveis e bibelôs das residências anteriores dos Verdurin. As coisas lhe evocam o passar do tempo, e o 
mesmo ocorre com outro conviva, o Narrador.

O que ambos sentem é, a rigor, incompartilhável. Mas Proust persiste na descrição dos objetos e na análise do que Brichot e o Narrador percebem neles. Dá-lhes uma permanência que é acessível ao leitor. 
A longa frase não é extravagante. É grande arte. Ela condensa a irrupção do passado no presente, sua simultaneidade. Materializa a procura do tempo perdido. A forma é conteúdo —e vice-versa. Eis a frase:

“Canapé surgido do sonho entre poltronas novas e bem reais, cadeirinhas revestidas de seda rosa, pano brocado de mesa de jogo alçado à dignidade de uma pessoa, pois que como uma pessoa ele tinha um passado, uma memória, guardando na sombra fria do salão do cais Conti o esplendor ensolarado pelas janelas da rua Montalivet (cuja hora ele conhecia tão bem quanto a própria madame Verdurin) e pelas portas envidraçadas de Douville, aonde o tinham levado e de onde ele olhava o dia todo, para além do jardim florido, o profundo vale de*** aguardando a hora em que Cottard e o violinista jogariam sua partida, buquê de violetas e de amores-perfeitos num pastel, presente de um grande artista amigo, já morto, único fragmento remanescente de uma vida desaparecida sem deixar traços, resumindo um grande talento e uma longa amizade, lembrando o seu olhar atento e suave, sua bela mão gorda e triste quando pintava; bonita balbúrdia, desordem de presentes dos fiéis que seguiu por todo canto a dona da casa e terminou por ter a marca e a firmeza de um traço de caráter, de uma linha do destino; profusão de buquês de flores, de caixas de chocolate que sistematizava, aqui como lá, o seu desabrochar segundo um modo de floração idêntico: interpolação curiosa de objetos singulares e supérfluos que têm ainda o aspecto de acabar de sair da caixa onde foram oferecidos e que permanecem pela vida toda o que foram primeiro, presentes de Ano-Novo; todos esses objetos enfim que não saberíamos isolar dos outros, mas que para Brichot, velho habitué das festas dos Verdurin, tinham essa pátina, esse aveludado das coisas às quais, dando-lhes uma espécie de profundidade, vem juntar-se o seu duplo espiritual; tudo isso, disperso, fazia cantar diante dele como tantas outras teclas sonoras que despertavam no seu coração lembranças amadas, reminiscências confusas e que, mesmo no salão bem atual, que elas marchetavam aqui e ali, recortavam, delimitavam, como faz num dia bonito uma moldura de sol seccionando a atmosfera, os móveis e os tapetes, prosseguindo de uma almofada a um vaso de flores, de um tamborete à persistência de um perfume, de um modo de iluminação a uma predominância de cores, esculpiam, evocavam, espiritualizavam, faziam viver uma forma que era como uma figura ideal, imanente a seus domicílios sucessivos, do salão dos Verdurin”.

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