Um dos trechos mais engraçados de “À Procura do Tempo Perdido” está no final do segundo volume. É quando Charles Swann, dândi e financista que não encontrou a sua vocação na vida, visita a duquesa e o duque de Guermantes, aves raras da nobreza que decai sem perder a pose.
Swann é abastado, culto, cortês. Oriane de Guermantes, a mais bela aristocrata de Paris, é cantada em prosa e verso devido à elegância. O duque é um grosseirão. Rebento boçal de uma família com mais séculos de história que a França, só a sua fortuna o torna tolerável.
Oriane e o marido se preparam para um jantar de gala e um baile à fantasia quando chega Swann, um velho amigo. Papo vai, papo vem, a duquesa o convida a passarem as férias na Sicília. Ele não aceita, ela insiste. Uma nova negativa a leva a perguntar por quê.
“Minha querida amiga, estarei morto há meses”, diz Swann, sorrindo. Ele tem uma doença incurável e os médicos atestam que morrerá logo. Por um instante, a duquesa suspende a marcha rumo à carruagem e, escreve Proust, “levanta os olhos azuis e melancólicos, mas cheios de incerteza”.
Nada no seu manual de etiqueta lhe diz como se comportar naquele momento. Ir à balada ou consolar o amigo em fim de linha? Insensível, expedito, e notando que estavam atrasadíssimos, o marido a empurra à soirée. Oriane aceita a tutela de bom grado e retoma a marcha, agora apressada.
Quando ela põe o pé no degrau-estribo, porém, o duque brada, horrorizado: “Você está com sapatos pretos!”. Como vestia toalete vermelha, os sapatos tinham que ser iguais. Oriane os troca com calma.
Da carruagem, o seu marido dá tchau a Swann: “Você nos enterrará a todos!”.
O episódio é cômico, mas incomoda desde o começo. Ao aguardar o casal Guermantes, Swann diz ao narrador que toda a nobreza de boa cepa era antissemita —justamente porque contra Dreyfus. Swann explica o preconceito da nobreza com simplicidade ácida:
“Não se tem impunemente mil anos de feudalismo no sangue. Naturalmente, eles acreditam que isso não conta nada nas suas opiniões”. A lâmina materialista, embebida em sarcasmo, é de dar inveja a Brecht.
Páginas adiante, o príncipe de Guermantes em pessoa, chefe de fila do clã nascido nas catacumbas da Idade Média, caça Swann numa festa da nata da sociedade. Imagina-se que o carola de raiz afrontará o judeu desenraizado.
Dá-se o contrário: solidário a Dreyfus, o merovíngio faz questão de festejar Swann na frente de seus pares. O conflito entre as classes não elucida comportamentos singulares. A história preside os atos individuais, mas não os determina de modo mecânico-causal.
A duquesa está no nó dessa dialética. É espirituosa, tem graça, bondade e nobreza. Mas é vil antes mesmo de calçar os sapatos vermelhos. Só que com um serviçal, o que é sintomático: ao saber que um lacaio irá se encontrar com a noiva, a meiga patroa o detém em casa.
Ressentida, ela sentiu um aperto no coração ao perceber a felicidade não consentida de seu subalterno —felicidade “que a irritava e da qual tinha ciúmes”. O mal está amalgamado à exploração, e Proust os disseca.
Oriane é uma hidra tripartite da belle époque em “Proust’s Duchess” (Knopf, 736 págs.). Caroline Weber, professora de literatura, biografou três locomotivas que inspiraram Proust a criar a duquesa de Guermantes.
Duas delas tinham pedigree. Laure de Sade, condessa de Chevigné, descendia do divino marquês, o autor de “A Filosofia da Alcova”. Élisabeth de Caraman-Chimay, condessa Greffulhe, foi a aristocrata mais chique do fin de siècle, superando até sua xará Sissi, imperatriz da Áustria.
A sem-título era madame Geneviève Halévy Bizet Straus, grande dama egressa da classe média. Ela se casou com Georges Bizet, compositor que morreu três meses após a pífia estreia de “Carmen”.
Depois, a ópera se tornou um prodígio de bilheteria. Muitos milhões de francos de direitos autorais foram para a conta da viúva de Bizet. Ela se casou com Émile Straus, o multimilionário advogado dos Rothschild. Tornou-se a mulher mais rica da França.
Dreyfusarde de primeira hora e grande patrona das artes, madame Straus comandou o salão mais disputado de Paris. Era também neurastênica, e seu filho se suicidou. Morreu só, afogada na fortuna.
“Proust’s Duchess” é uma máquina de informações. Não tem nada da sabedoria de “Tempo Perdido”. Suas biografadas estão aquém da duquesa de Guermantes, mulher de papel e tinta —de pixels e LED. Oriane é mais real que a realidade porque Proust a sonhou e a fez.
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