Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Famílias disfuncionais

A cômica interdependência de ricos e pobres vira tragédia em 'Parasita'

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“Eles são ricos, mas ainda assim são legais”, diz o pai da família pobre que, mediante mil esquemas, descola um emprego na casa de uma família rica. Sua mulher, ex-arremessadora olímpica de martelo, discorda. “Eles são legais porque são ricos”, diz.

É com diálogos assim, sarcásticos e precisos, que “Parasita” se destaca da mesmice cinematográfica. Sua força é tal que é difícil defini-lo. É fina arte que fala ao grande público; comédia hilária que vira tragédia; thriller com tiques de melodrama; análise sociopolítica que não denuncia nem panfleta.

Ganhador da Palma de Ouro em Cannes, o filme de Bong Joon-ho vem recebendo confetes unânimes da crítica e arrecadou US$ 108 milhões nas bilheterias mundo afora, o que é prodigioso para um filme coreano. Muitos associaram “Parasita” ao cinema de Alfred Hitchcock.

A aproximação tem a ver. As cores quentes, a fluidez fabulosa, a suavidade aveludada dos movimentos da câmera, a humanidade dos personagens e a calma construção do suspense —tudo pertence ao universo de Hitchcock, que Bong emula e no qual injeta comicidade pop.

Ilustração de Bruna Barros para M.S. Conti 1611
Bruna Barros

A diferença está nos objetos de “Parasita” e, digamos, “Um Corpo que Cai”. Enquanto este sonda a psique e a perversão de indivíduos descentrados, aquele busca pintar um panorama social, tanto o coreano como o da periferia planetária e, até, o de fatias dos países centrais.

“Parasita” parte de duas premissas corriqueiras no cinema, as desavenças entre patrões e empregados e a ocupação de uma casa por estranhos. No primeiro caso está “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, que serviu de alegoria para o PT no poder. No outro, “Mãe!”, de Darren Aronofsky, que elege as multidões como o Mal.

Bong mistura as premissas e expõe duas famílias. Os Park, ricos e proprietários, e os Kim, pés de chinelo que não têm onde cair mortos. Os Kim moram num porão cheio de baratas e bugigangas. Montam caixas de pizza de papelão para ter um dinheirinho.

Os Park vivem numa mansão de modernismo minimalista. Os cômodos são espaçosos, a despensa tem de tudo, as crianças são mimadas e a madame, perua. A governanta e o chofer estão ali para bem servi-los. Tudo é limpo, impecável, claro.

Jo Yeo-jeong em cena do filme 'Parasita', de Bong Joon-ho
Jo Yeo-jeong em cena do filme 'Parasita', de Bong Joon-ho - Divulgação

Enquanto o pai dos Kim comemora a descoberta do lugar onde podem surrupiar o sinal do wifi do vizinho de cima, o dos Park se queixa que “as pessoas que andam de metrô têm um cheiro peculiar”.
São famílias disfuncionais. Os Kim não têm ocupação, uma casa decente e chance de subir na vida.

Passam a perna em outros pobres como eles e enganam os patrões. Engraçados, inteligentes e empreendedores, atacam como um time.

O filho dos Kim, por exemplo, ensina o pai a interpretar o papel de servo atencioso, com o objetivo de aplicar outro golpe. A cena é memorável: como um diretor de cinema, ele o orienta a se distanciar do personagem. Parece Brecht.

Os Park vivem na sua bolha. A cidade e seus refugos humanos não contam. O que lhes importa é a mansão, a Mercedes, os amigos iguais a eles. Vivem naquele estado que um dia teve o nome de alienação. Mas são legais porque são ricos.

Cada qual a seu modo, as famílias apartadas são disfuncionais porque a sociedade o é. São parasitas que se desconhecem e entretecem uma sociedade. Como formam um todo, o filme escapa do maniqueísmo sem diluir a oposição entre as classes.

O conteúdo de verdade de “Parasita” é, pois, uma velha conhecida dos brasileiros, a desigualdade social. Com inteligência e arte, ela é esmiuçada nas miudezas do cotidiano, mas por meio de uma abordagem política lato sensu.

Como a concentração da renda e a espoliação crescem velozmente no mundo todo, o alcance do filme de Bong Joon-ho é poderoso. Ele condensa numa construção estética traços definidores da sociedade atual.
Uma dessas características é o convívio inconsciente dos contrários. As famílias Kim e Park vivem sob o mesmo teto numa simbiose particular: não se misturam. Os pobres sabem que enganam para sobreviver.

Os ricos sequer percebem os pobres porque não sabem ao certo quem são eles próprios, os ricos.
Não há conciliação entre uns e outros. A força da gravidade social, contudo, faz com que os proprietários fiquem por cima e os pés-rapados desçam novamente: escondem-se embaixo de mesas, voltam para um novo porão.

Uma imensa tempestade cai então sobre ricos e pobres. Ela traz resultados opostos para uns e outros e sepulta qualquer chance de convivência entre eles. Harmonia, só na arte. Consciência, só em “Parasita”.

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