Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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A vida num contêiner de lixo

Mundialização, realismo e política no filme Um Elefante Sentado Quieto

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A duração do filme, sua narrativa, diálogos e cenário não são para os fracos. Ele dura quase quatro horas. A câmera não desgruda das pessoas: gente remota é vista bem de perto. Mais gritado do que falado, o filme é pontuado por pesadas reticências. Passa-se numa cidade detonada.

A violência lateja sem parar, mas estoura fora da tela —não tem nada de espetaculoso. Uma feiura ferruginosa corrói seres e lugares. A cidade é opaca, aparenta não ter passado nem futuro. Nada de decisivo ocorre. Gritos e sussurros não levam a nada. O mal-estar é palpável, mal cheiroso.

"Um Elefante Sentado Quieto" diverge do cinema chocho ao qual nos acostumamos, sobretudo o do exibicionismo complacente dos festivais. O filme dirigido por Hu Bo é um clássico modernista. Obra de arte austera, sonda a alma de gente de verdade num mundo de mentiras.

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

O filme investiga a sociabilidade aqui e agora. Narra quatro histórias que se entrelaçam numa cidade que se transmuta a mil no norte da China. Tudo ocorre num só dia, comprimido em 235 minutos. O tom dominante é o cinza de "Melancolia", de Dürer. As quatro tramas são torpes.

O menino briga na escola e sem querer manda o colega para a UTI, onde agoniza. O bandidinho transa com a mulher de um amigo, que se mata na sua frente. O aposentado é empurrado para o asilo pela filha, de olho no seu apê. O lance do professor casado com a aluna vaza na internet.

"Um Elefante Sentado Quieto" é feito de fricções, abuso, rancor. Os personagens são mostrados de costas, com a cidade ao fundo, fora de foco. O diálogo entre eles é penoso. O amor é inviável e impensável. Não há paródia, ironia, pós-modernices. Há, isso sim, exasperação crescente.

As desavenças se estendem aos animais: um cachorro é morto pelo outro a dentadas. Seu dono o põe num saco e joga o corpo no lixo. Bichos e pessoas são efêmeros e sem serventia, resíduos vivos. O bandido pé de chinelo sintetiza esse sentimento: "Minha vida é um contêiner de lixo".

O ponto de fuga das vidas asfixiadas é o elefante do título. Logo no início, o filme alude a um paquiderme que, noutra cidade, quedaria imóvel num circo. As quatro damas e cavaleiros do pós-colapso tateiam à procura. A besta mitológica não aparece, mas emite ruídos.

Que animal é esse? Metáfora de uma China perdida? Alegoria da natureza, do maravilhoso? Fantasia? Sem intimidade com a cultura chinesa, fica difícil responder. E é mais difícil ainda porque Hu Bo se matou assim que terminou aquele que foi o seu primeiro e único filme. Tinha 29 anos.

O suicídio do diretor foi uma demão romântica no realismo sóbrio de "Um Elefante Sentado Quieto". Acrescentou-se ainda outra camada de sentido ao filme, esta política: a ditadura chinesa proibiu a sua exibição no país. É uma injustiça, porque o panorama que Hu Bo pinta não é nacional.

O ambiente que ele dá a ver é o da periferia planetária, hipertrofiada. Há agasalhos multicoloridíssimos, tênis estridentes, celulares ubíquos; atritos de todos com todos; detritos a perder de vista. Só a trilha sonora abre claros na desolação geral —e a música libertadora não é chinesa.

"O Elefante" poderia ser brasileiro se o sentido da destruição não apartasse os dois países. Hu Bo expõe a vertigem do progresso em marcha acelerada: o torvelinho de 1,38 bilhão de chineses aos trancos e barrancos. No Brasil estagnado, a degradação é um vagido obstinado e circular.

Embora o contêiner seja outro lá e cá, o lixo da globalização é o mesmo. Dele provém a sensação de isolamento e perdição que impregnam o semblante gasto do quarteto de protagonistas. O afeto entre eles existe. Mas também o afeto é resto —lixo— de uma história que ficou para trás.

"Um Elefante Sentado Quieto" é, inclusive ele, resto: uma resposta estética à mundialização. A visão existencial e cinematográfica de Hu Bo é melancólica, mas ele não se compraz em explorar melodramas adocicados. Ao contrário, seu filme enfatiza a hostilidade social.

A maneira como "Elefante" investiga os destinos individuais, mostrando como se degradam e subsistem numa comunidade que se dissolve, tem algo de épico. É por isso que o filme, desafiador e exigente, repercute.

O longa-metragem foi enaltecido por A. O. Scott no New York Times ("realismo gracioso e sombrio"); por Jacques Mandelbaum no Le Monde ("magia do cinema"); e por Richard Brody na New Yorker ("retrato magistral do desespero íntimo e político").

Tem talvez mais a dizer aos brasileiros.

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