Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mario Sergio Conti

Saiu do forno uma estrondosa tradução de 'Pantagruel e Gargântua'

É um clássico, um galgo de língua de fora que corre feito doido há 500 anos

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Honoráveis damas e donzelas. Já que estamos à toa, e não dá para lhes dar um bom catiripapo na pança, roguemos uma praga aos camundongos cheios de medalhas que se refastelam na baba fétida do monstro vomitador de pus amarelo e estrume quente, Bolsossauro.

“Que o raio os parta, a úlcera os cambaie, a diarreia os tome, a zipla os fuquefuque pacas, densa que nem pelo de vaca, reforçada de vivo argento, até rasgar seu fundamento e, que nem Sodoma e Gomorra, caiam sobre enxofre, fogo e abismo.” A rataiada faz jus a isso e muito mais.

Suaves senhoritas e senhorinhas. Gostaram do caralhistatório nos apotecários do atirapeidos? Riram à vaca farta? Ou não entenderam diacho algum da cacetada nos bagos dos lazarentos que andam com pés de gato magro e furtam com mãos de gato gordo?

Na ilustração, toda preta e branca, um homem vestido como no Império Romano leva à boca um garfo, no qual está espetada uma pessoa. Ao fundo, colunas romanas e duas pessoas que carregam sobre as cabeças uma bandeja fumegante
Ilustração de Bruna Barros para a coluna de Mario Sergio Conti publicada em 10 de julho de 2021 - Bruna Barros

O mar não está para peixe, anda seco que nem arenque defumado: o país está grávido de uma panelada de couve verde-oliva. Pasmos como patos, nem sequer tossimos, mesmo tendo comido sete quilos de penas. O que nos resta é aguentar o tranco e aguardar o maná celeste do saber honesto.

Rejubilai, então, amáveis mancebas, amancebadas ou não. Acaba de sair do forno do esquecimento uma edição vibrante, intumescida qual um oboé de carne, de “Pantagruel e Gargântua”, o primeiro dos três tomos das obras completas de François Rabelais (editora 34, 447 págs).

Vá lá: é um clássico, um galgo de língua de fora que corre feito doido há 500 anos. Estrebuchando, o bicho costuma ser destrinchado por rabinistas que, por vã jactância, se alegram em arrancar-lhe alegorias das vísceras. Seria um livro para fardões embolorados e sem assunto.

Rabelais, é certo, escreveu num tempo em que barbeiros faziam cirurgias. Está datado, diria você, solerte. Neca de pitibiriba, responderia este seu humilde servo. Porque o tempo passou, mas nem tanto nessas paragens lôbregas e lúgubres nas quais nos espojamos.

Barbeiros já não fazem enemas. Mas há milicos que se acham e acham que sabem governar, veja só a petulância dos bofes de maus bofes. Se corretamente orientados, podem até cumprir sua missão tradicional: pintar com cal sarjetas e troncos no meio-fio. O sargento Garcia que geriu a Saúde, porém, nem isso.

“Pantagruel e Gargântua” é para aqui e agora. O romance é uma pândega, uma invectiva de rolar a rola contra os que, se caírem de quatro, pastarão até bem depois do Juízo Final. É uma paródia escatológica do status dos tatus de focinho empinado. Um escárnio grotesco dos patifes no poder.

Pouco se sabe de Rabelais, que nasceu no século 15. Foi monge e teve filhos. Era artista, apóstata e também médico. Intelectual, sabia meia dúzia de idiomas, mas escreveu numa língua popular que baralhava patuás da província com a alta erudição iluminista.

Ainda que bafejado pelas musas do Renascimento, “Pantagruel” não tem ponto de fuga, pois que satiriza tudo e todos com folia e fúria. Ele se escora no racionalismo grego para chicotear a escolástica católica, mas não há Sócrates que se safe do seu humor nonsense.

Cintilam no lítero-lupanar rabelesiano Gargamela e Bocaberta, Beijacu e Chuparrabo, Panurgo, Lobisomem e toda a destrambelhada plêiade de tipos coroada por Gargântua e seu filho Pantagruel, gigantes plácidos que mamam todas e mandam para o bucho o que pintar.

Como é obsceno, há também no romance brechas e rachas, êxtases venéreos, a arte de peidar honestamente em público, recessos das pudendas de meretrículas, gente que quase se caga de alegria, esplêndidas jebas balangando até o joelho, ditos sublimes do tipo “com bela xota a pica sobe”.

Rabelais inventou o francês. Não é força de expressão: dezenas dos seus neologismos foram parar em dicionários e na fala cotidiana, começando por “pantagruélico”. Mas a sua influência é reduzida. Há ecos remotos dele no Flaubert de “Um Coração Simples” e nas caricaturas ácidas de Balzac.

Já sua sombra indecorosa avulta em caricaturas de verdade, no humor hostil que, a partir de Daumier, chega a Reisner, Wolinski e, com um talento cada vez mais jururu, vem até o Charlie Hebdo. Por aqui, os delírios de Brás Cubas lembram o Rabelais lido por Machado.

Em sendo assim, há que se tirar o chapéu, estourar champanhe e erguer um brinde a Guilherme Gontijo Flores, autor da estrondosa tradução de “Pantagruel e Gargântua”.

Poeta, professor e poliglota, ele fez do francês seiscentista um português contemporâneo e criativo, fiel à esbórnia do festim rabelesiano. Tim-tim!

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