Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Como voltamos à época em que bichos falavam, voltaram as notas militares

Força armada está desunida e atarantada porque será comandada por gente avessa ao golpismo da cúpula militar

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Nas fábulas, os animais falam. "As uvas estão verdes", diz a raposa que não as alcança. "Agora dance", responde a formiga à cigarra que cantou no verão e lhe pede ajuda no inverno. Como regredimos aos tempos em que os bichos falavam, voltaram à moda as notas militares.

As Forças Armadas formam uma corporação. Com 360 mil membros, em tese ela é igual à dos youtubers, malafaias, astrólogos ou rábulas. São corporativos seus códigos, idiossincrasias e escrita. É por meio deles que se distinguem dos civis.

O folheto de uma feiticeira ("trago seu amor de volta em três dias") difere de uma receita médica ("um comprimido duas vezes ao dia)". Embora com estilos díspares, as duas corporações querem ser entendidas por todos, pelos que não são bruxas nem doutores.

Sete soldadinhos de plástico (brinquedo) em poses de pessoas comuns, sem armas... todos verdes.
Ilustração de Bruna Barros para coluna Mário Sérgio Conti - Bruna Barros

Não é assim nas Forças Armadas. Seus chefes se dirigem tão-somente aos subalternos, que em resposta lhes batem continência. Um general não pede um cafezinho, ordena. A hierarquia é a viga-mestra da corporação.

Por isso o coronel Ustra não pedia a um tenente que, por favor, quando tivesse um tempinho, arrancasse com alicate as unhas de um comunista, amarrado por um sargento que também fazia o que lhe mandavam. Doa a quem doer, ordens são ordens. Costuma doer em civis.

"Um manda e outro obedece", ensinou o general Pazuello quando Bolsonaro o proibiu de comprar vacinas chinesas, portanto comunistas. Pela lógica hierárquica, o gênio da logística acertou ao mandar para o Amapá 37 mil doses de vacina destinadas ao Amazonas. Cumpria ordens.

A última nota do comando do Exército é um biju na forma e no conteúdo. Na forma, ela abusa da caracterização dobrada. Pressupõe que os paisanos não entendem um adjetivo que ande sozinho pelo texto; ele tem de estar de mãos dadas com outro.

Então, reza a nota: alusões "mentirosas e mal intencionadas" são feitas de forma "anônima e covarde", "maliciosa e criminosa", por "indivíduos ou grupos" sem "ética e profissionalismo". Ufa ufa.

No fim, a nota repete o dó de peito da verve militar, bate o bumbo com maiúsculas ribombantes: "o Exército Brasileiro permanece coeso e unido". Durma-se com um barulho desses.

No conteúdo, o lero-lero da corporação unida e coesa significa o contrário. A força armada está desunida e atarantada porque a partir de janeiro será comandada por gente avessa ao golpismo da cúpula militar, escolhida a dedo por Bolsonaro. É o que se espera.

A nota espelha a cisão dos bolsonaristas. A facção brucutu acusou a ala dos frouxos de serem melancias, verdes por fora e vermelhos por dentro. Somos uma grei inquebrantável, contra-atacou a nota. É dose, aliás dupla: ambos os bandos veem comunistas debaixo da cama de Bolsonaro.

Um dos primeiros a recorrer ao diversionismo antidivisionista foi o general Lott, ministro da Guerra em 1955. Ele deu um golpe para impedir que outros militares dessem outro golpe, barrando a posse do presidente eleito, Juscelino. Foi um golpe preventivo. No Brasil, mesmo generais legalistas dão golpes.

Noutra situação de anarquia militar, o capitão Heitor Ferreira foi mandado pelos bolsonaristas dos anos 1960 para Ponta Porã, na fronteira com o Paraguai. Fora assistente de Geisel e Golbery, e agora ensinava recrutas dos rincões a escovar os dentes.

Bem humorado, culto, louco por Cole Porter e Gershwin, Heitor Ferreira não parecia militar. No quartel de Ponta Porã, tentou ensinar os mais espertos a escrever. Dava-lhes um texto e pedia que o resumissem.

"Era tiro e queda: os resumos ficavam maiores que o original", contava, rindo. A reiteração não era um atributo militar, achava, mas da oratória pátria: "brasileiro não gosta de ser sucinto". Mas admitia que, sem limites, os militares estavam unidos e coesos no emprego de clones léxicos.

Eles próprios sabem que a bifurcação sintática é cômica. Tanto que a soldadesca inventou um adágio para arreliar a logorreia dos chefes: "o soldado é um homem que, ao som ou ruído de uma bala ou projétil, se lança ou se atira ao chão ou ao solo".

As notas dos generais não levam em conta que a força das palavras pode superar a realidade da força. É a lição embutida na frase de Bonaparte ao chegar ao Cairo: "Soldados, do alto dessas pirâmides 40 séculos vos contemplam".

Todo mundo lembra a frase, mas poucos sabem que a campanha do Corso no Egito foi um desastre. Porque naqueles tempos fabulosos os animais não falavam. Calados, camelos e militares mascavam chicletes imaginários à sombra das pirâmides.

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