Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Mario Sergio Conti

À espera do apocalipse

Em 'O Sentido de um Fim', Frank Kermode interpreta o final dos tempos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O fim do mundo vem aí. Seus sinais são os tufões e maremotos, as enxurradas e incêndios do clima caótico. A Guerra na Ucrânia e a chance maior de um cataclismo nuclear. A trilha sem volta rumo à desertificação da Amazônia. O fantasma de um vírus mil vezes mais letal que o da Covid.

O fim do mundo está aqui. Num artigo publicado há dias na Folha, Carlos Orsi disse que o bolsonarismo é uma seita pré-milenarista. Seus devotos cansaram de esperar por/pelo Messias. Depredaram os templos dos três Poderes e providenciaram eles mesmos o Apocalipse.

Apocalipse significa revelação em grego. É a revelação de um tempo radicalmente diferente do que veio antes. Houve então quem achasse que a posse de Lula inaugurava a era da concórdia. Mas sete dias depois as legiões do Anticristo alçaram voo, anunciaram que o passado não passou.

Ao centro da imagem, um pequeno homem vestido com a camisa 10 da seleção brasileira empunha uma arma de fogo e grita “vem, senhor Jesus!”. Ao fundo a escuridão em movimento é representada por pinceladas fortes em cor preta. A seus pés árvores cortadas, um pássaro e duas onças mortas.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 20.jan.2023 - Bruna Barros

"O Sentido de um Fim" (Todavia, 208 págs.) é uma crítica das imagens apocalípticas. O livro mostra que a antevisão do fim de tudo é um modo de os indivíduos se situarem no tempo que os ultrapassa –aquele que transcorreu antes deles e continuará depois de morrerem.

Seu autor, Frank Kermode (1919-2010), foi, e continua sendo, um dos faróis da crítica literária britânica. "O Sentido de um Fim", sua obra magna, chega ao Brasil com mais de meio século de atraso, mas traz um bom epílogo, escrito na virada do milênio.

Em 1965, o Juízo Final parecia à mão. A crise dos mísseis em Cuba ecoava os cogumelos atômicos de Hiroshima e Nagasaki. A Guerra Fria fervia. Motins contra a invasão do Vietnã e o racismo agitavam os Estados Unidos e reverberavam mundo afora.

O grupo 'Chicago 7', que protestou contra a Guerra do Vietnã e foi julgado em 1969 por causar distúrbios em convenção do Partido Democrata. - Richard Avedon - 25.set.1969/The Avedon Foundation via AFP

Em 1999, a maré escatológica refluíra. O pesadelo nuclear fora normalizado. A Guerra Fria já era. A consciência ecológica engatinhava. O status quo regia o concerto das nações.

Com isso, o início do novo século e do terceiro milênio não animou ninguém. Às vésperas do ano 1000, ao contrário, houve comoção, porque se tinha certeza de que dele a humanidade não passaria. E os anos pré-1900 levantaram vagas de decadência e dissipação: o "fin de siècle" francês.

Kermode trabalha noutra escala, a da ficção. Sua base é a Bíblia, cujo primeiro livro, o Gênesis, começa do começo: "No princípio Deus criou o céu e a terra". E o último, o Apocalipse, termina com um apelo ao Messias e exalta o advento do novo tempo: "Vem, Senhor Jesus!".

O criador anima e detona o tempo. As criaturas são reguladas pelo tique-taque do relógio. Como o começo está em consonância com o fim, o tempo intermediário dos humanos ganha sentido. Tal sentido não é evidente, tem que ser decifrado. Aí entra o crítico literário: ele interpreta formas fictícias, esses "artifícios da eternidade" que alicerçam a literatura.

No plano macroscópico, Kermode estuda as formas do Apocalipse de escritores gregos, latinos, medievais e modernos. Os pontos altos são as interpretações de Aristóteles e Agostinho; de "Macbeth" e "Rei Lear"; de Sartre e Beckett.

Os pontos baixos são as apreciações de Wallace Stevens e Robbe-Grillet, talvez porque o tempo tenha corroído a obra de ambos, se bem que não totalmente nem de maneira homogênea —muito menos a do poeta americano e muito mais a do romancista francês.

No nível microscópico, "O Sentido de um Fim" esmiúça a figura sonora que registra o tempo, o tique-taque do relógio. Ele observa que, se o tempo fosse retilíneo, cronológico de cabo a rabo, a mesma palavra seria repetida: tique-tique.

Mas como a onomatopeia tem palavras quase idênticas, ela encapsularia o trajeto entre a gênese e o apocalipse. E tem mais: o "taque" registraria festas, feriados e aniversários; os dias especiais que apontariam para o fim da própria noção de dias, para a Revelação. A análise é bela, e descabelada da cabeça aos pés.

Seu subjetivismo nubla os fatos. A perspectiva de um apocalipse nuclear ou ambiental é real, enquanto o Juízo Final de um mané medieval era fruto de fantasias – instigadas por sermões de padres e murais como o de Michelangelo na Capela Sistina.

Kermode argumenta que fantasias são reais como a realidade. Dá como exemplo os medos infantis, que não têm causa física e se nutrem da imaginação. Os desvarios, por excêntricos que sejam, estão ligados a crenças e sortilégios.

É um mau agouro. Significa que a Seita dos Últimos Dias decifrou os ruídos e silêncios de Bolsonaro, viu neles uma convocação ao Apocalipse. Idólatras e mártires não são demovidos pela realidade. Muito menos pela razão. Talvez nem pela prisão.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.