Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Novelão 'Os Fabelmans' e poético 'Aftersun' abordam relação pais-filhos

Enquanto Spielberg não traz nuances, Charlotte Wells alude, elude, ilude

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"Os Fabelmans" está cheio de peripécias. Como outros filmes de Steven Spielberg, sua força vem das reviravoltas da trama, que se apoia mais em si mesma do que na busca de um sentido. O que conta são os sobressaltos do melodrama, que conflui para um final redentor.

E tome olhos esbugalhados de crianças boquiabertas com a mágica do mundo. Tome o crescendo da trilha sonora, que produz reações estereotipadas —agora é hora de rir: kkkk; ou se encantar: óóóó; ou de jorrar cascatas de lágrimas no escurinho do cinema: buááá.

Spielberg não nuança. Faz blockbusters, arrasa-quarteirões. Domina a técnica e metralha efeitos especiais. Vide o "Tubarão" predador, os aliens de "E.T." e "Contatos Imediatos do Terceiro Grau", os dinossauros de "Jurassic Park", os petardos de "O Resgate do Soldado Ryan".

"Os Fabelmans" traz para o primeiro plano a própria técnica cinematográfica. Na sua melhor sequência, a família e um tio postiço estão num acampamento. O adolescente Sammy filma cenas noturnas e, ao revê-las em câmera lenta, descobre que a mãe e o tal tio têm um caso.

As cenas lembram "Blow-Up", de Antonioni, no qual a ampliação de uma foto revela que o fotógrafo pode ter testemunhado um crime. Mas enquanto o italiano realça os antolhos da tecnologia, o americano crê nela cegamente.

É a indústria que norteia "Os Fabelmans". Na primeira vez que vai ao cinema, Sammy vê "O Maior Espetáculo da Terra", o blockbuster de Cecil B. DeMille. Fica siderado com a sequência da trombada do trem, a ponto de reproduzi-la numa maquete e filmá-la.

Cena do acidente com trem em 'O Maior Espetáculo da Terra', de Cecil B. DeMiile (1952)
Cena do acidente com trem em 'O Maior Espetáculo da Terra', de Cecil B. DeMiile (1952) - Divulgação

O contraponto entre a paixão amorosa e o desastre ferroviário seria uma abordagem inventiva. Mas a locomotiva de Spielberg não se aventura nesses trilhos. Opta pelo pacato piuíí da mistificação autobiográfica.

"Os Fabelmans" conta que ele fez filmetes de guerra e bangue-bangue na juventude para aprender a técnica do cinema. Agora a utiliza para arrasar quarteirões da sensibilidade. O arraso implicou evitar uma colisão trágica no filme, a de Édipo.

Isso é feito com um deslocamento. Em vez de lutar com o pai pelo afeto da mãe, Sammy-Édipo transfere seu ódio para o amante dela. Fantasmal e violenta, a ruptura do tabu do incesto, lei fundadora da civilização ocidental, dá lugar a um mimimi contra o adultério, a transgressão acessória.

O deslocamento faz da tragédia um novelão. O filme pula do antissemitismo para um cara que, caído do céu, discursa sobre família e arte. O simplismo é arrematado pela aparição, outra vez vinda do nada, do diretor John Ford, caricaturizado por David Lynch. Nada faz sentido.

Freud observa em "A Interpretação dos Sonhos" que o impulso edipiano elucida "Hamlet" e "Os Irmãos Karamázov", além de "Édipo Rei", obras acerca do embate entre filhos e pais. Nem pensar, pois, em pôr Spielberg na lista ilustre, junto com Shakespeare, Dostoiévski e Sófocles.

Já a escocesa Charlotte Wells faria boa figura no rol. "Aftersun", seu filme de estreia, que dirigiu aos 35 anos, não é uma obra-prima. Até porque não tem essa ambição. Na contracorrente do cinema gritado de hoje, ela alude, elude, ilude.

Paul Mescal e Frankie Corio em cena do filme "Aftersun", de Charlotte Wells
Paul Mescal e Frankie Corio em cena do filme 'Aftersun', de Charlotte Wells - Divulgação

Sem arroubos nem rojões, seu filme é côncavo, lírico. Parece um conto porque sintetiza uma situação, as férias de pai e filha na costa turca. Também se assemelha a um poema pois tira energia de um fluxo de imagens espessas, banais e com um quê oculto.

É denso a partir do título. "Aftersun" é o bálsamo que acalma a pele depois de um dia de verão. É também o que ocorre após o Sol se pôr e, na noite escura da alma, vem a nostalgia da luz que doura e inflama o corpo.

No inglês, o título conota uma busca. "After [the] sun" significa à cata do sol –pode ser a procura do pai pela filha ou a dela por ele. Por fim, "sun" e "son" têm pronúncia idêntica: quando o Sol e o filho se vão, um pai erra e arde na solidão. Todos esses sentidos surgem no filme.

Ele fala de uma filha de 13 anos e de um pai de 31 que tomam sol na piscina, passeiam, se dão bem. Ainda assim, aflições afloram. Como quando Laio chora; ou Antígona diz a Édipo que ele não tem dinheiro.

Nada horrendo acaba ocorrendo. Mas a cena em que se dão adeus é de cortar os pulsos. O filme vai também ao futuro, em imagens obscuras nas quais a menina, agora adulta, cuida da sua filha.

A moça revê filmes caseiros das férias com o pai. Ele terá morrido? Não se sabe, embora se intua que algo vital se perdeu. Não para sempre porque –viva a arte– "Aftersun" recupera esse algo inefável.

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