Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Mostra sobre capela Sistina acaba com tchauzinho de Cristo

Selfies, fiascos, céus e escarcéus na mostra do MIS em São Paulo

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Não há por que esnobar a exposição "Michelangelo: O Mestre da Capela Sistina", organizada em São Paulo pelo Museu da Imagem e do Som, o MIS. Vê-la é mais cômodo que ir ao Vaticano visitar a igreja onde os papas são eleitos há mais de meio milênio.

Lá, a contemplação não é serena nem silenciosa. Seis milhões de turistas vão à capela todos os anos. A multidão observa de pé as paredes com episódios da vida de Moisés e Jesus feitos por Botticelli, Ghirlandaio, Perugino e outros menos votados.

O desenho da Sistina, que imitaria o Templo de Salomão, é um problema adicional. Com 41 metros de comprimento, 13 de largura e incríveis 41 de altura, o visitante tem que ficar de nariz para cima e o pescoço na horizontal para ver os afrescos de Michelangelo. Mas vale a pena.

Fumaça branca sai da chaminé, na Capela Sistina, quando da escolha do argentino Jorge Bergoglio como papa - Lalo de Almeida - 13.mar.13/Folhapress

Com dezenas de personagens, o teto da Sistina mescla videntes gregas —as sibilas— e profetas do Velho Testamento. Deus separa a luz das trevas, a terra da água. Cria Sol e Lua. Dá vida a Adão e Eva, que, safados, não se comportam e são expulsos do Éden por um anjo furibundo.

Há truques ópticos e arquitetônicos, distorções e sincronia, alegorias cabalísticas e erudição bíblica. Odes à razão batem cabeça com toadas melodramáticas. Sem informação prévia é difícil fruir as imagens de Michelangelo, o Renascimento a pino. É proveitoso ler Vasari na véspera.

No centro da imagem estão dois trabalhadores afixando cartazes. O trabalhador do lado esquerdo usa uma vassoura para colar o seu cartaz na parede, o trabalhador da direita está em cima de uma grande escada com o cartaz na mão.  Os cartazes que estão colando compõem uma figura muito maior, uma pintura célebre de Michelângelo.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 3.fev.23 - Bruna Barros

O desfecho, o Juízo Final, é em alto estilo. Ele ocupa a parede atrás do altar de alto a baixo, fecha o tempo com alvoroço agônico. Acaba também a Renascença, que dá lugar ao transe Barroco inaugurado por Michelangelo. Há pouca coisa equiparável em matéria de afrescos.

Como Roma é longe e ir lá custa os olhos da cara, a alternativa é a Sistina do MIS. Ela fica na Água Branca e o ingresso custa R$ 30. Desdenhá-la é preconceito pernóstico.

Imagem de referência do projeto da exposição “Michelangelo: Capela Sistina”.
Imagem de referência do projeto da exposição 'Michelangelo: o Mestre da Capela Sistina', no MIS Experience - Divulgação MIS/Experience

O chato, porém, é que se topa aqui com um troço que tem pouco a ver com a Capela Sistina. Impera o escarcéu brutal e brutalizante dos mega-shows.

Os curadores vendem a exposição como "imersiva". Elas estão na moda. Há outras três mostras imersivas na cidade —de Monet, Frida Kahlo e Bansky. No mês que vem virá a de Picasso. O que as caracteriza é a ausência de obras originais, trocadas por reproduções. Nada contra.

As reproduções democratizam o acesso à arte. Walter Benjamin dixit: com elas, as obras perdem a aura de entes únicos e místicos. As reproduções fazem com que se esvaneça a propriedade e, por extensão, a necessidade da classe dominante. A arte é de todos e para todos.

As cópias mecânicas não precisam ser tal e qual os originais. Em "À Procura do Tempo Perdido", Proust escreveu, bela e longamente, sobre a Séfora feita por Boticelli na Sistina. E o escritor nunca pôs os pés em Roma. Baseou-se em reproduções em preto e branco.

Ocorre que "O Mestre da Capela Sistina" é pretensiosa, tem de tudo em matéria de reproduções. Há até cópias da primeira "Pietá", de "Moisés" e de "David". É o de menos que as três esculturas não estejam na Sistina. Mas incomoda muito que sejam broncas e feitas com material mequetrefe.

As salas são estreitas, impedem o recuo para apreciar as ampliações do Todo-Poderoso e da serpente, de Noé e Jeremias, da turma toda. O simulacro do estúdio Michelangelo é primário. Só se salva a maquete da Sistina. Apesar de pequena, dá para perceber o interior da capela.

As legendas tendem ao grandiloquente. E ao confuso. Transcreve-se Goethe em letras garrafais, por exemplo: "Quem não foi à Capela Sistina não pode ter ideia do que um homem é capaz". Logo, vá lá correndo. Logo, quem foi só ao MIS não tem ideia do que Michelangelo era capaz.

Uma funcionária avisa na entrada que é permitido tirar fotos. Ato contínuo, há que se atravessar massas espessas de criaturas que tiram selfies e fotografam umas às outras. É assim em toda parte. Não seria necessário incentivar a incivilidade.

Chega-se, aleluia, a uma sala do tamanho de uma quadra de futsal, tomada por projeções de afrescos de Michelangelo. A "Quinta Sinfonia" de Beethoven detona os tímpanos, urra que o Altíssimo dará vida ao homem. Não dá outra, o dedo de Deus se acerca ao de Adão. Puxa, que criativo.

De supetão, um mar iracundo escarpa as paredes. Um escarcéu de lampejos e trovoadas espouca no céu. Sim, o Dilúvio. A arca de Noé se solta do afresco e singra sobre a procela. Bleargh.

A apoteose do fiasco é o Juízo Final. Peraí, Jesus está agitando o braço direito? Não é possível, mas está. É com um tchauzinho de Cristo que o mundo acaba.

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