Entenda como carimbos de Carmela Gross desafiaram a ditadura na década de 1970

Mostra em São Paulo evidencia como a artista transformou objeto da burocracia do Estado em ferramenta para fazer arte

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Tela da série 'Carimbos', de Carmela Gross, de 1978

Tela da série 'Carimbos', de Carmela Gross, de 1978 Romulo Fialdini/Divulgação

São Paulo

Durante a ditadura militar, o regime usava carimbos para assinalar obras de arte proibidas de circular. Dessa forma, as palavras interditada ou vetada eram marcadas com tinta preta no início de livros ou em folhas com letras de música, por exemplo, para apartar o que os fardados julgavam inadequado ao consumo público.

Naquele contexto de cerceamento à liberdade criativa da década de 1970, Carmela Gross deu novo sentido aos carimbos em um conjunto de trabalhos que desvinculava o objeto do aparato burocrático do Estado e o levava ao campo do sensível.

A artista encomendou carimbos em formatos de pinceladas, rabiscos, linhas e manchas, com os quais criou composições onde esses elementos, reduzidos às suas formas mínimas, são marcados repetida e organizadamente sobre o papel. Com 80 telas desenvolvidas, montou a exposição "Carimbos", na galeria paulistana Gabinete de Artes Gráficas, em 1978.

Tela da série 'Carimbos', de Carmela Gross, de 1978
Tela da série 'Carimbos', de Carmela Gross, do final dos anos 1970 - Romulo Fialdini

Agora, parte dessas obras é resgatada para uma mostra de mesmo nome no Instituto de Arte Contemporânea, também em São Paulo, com inauguração neste sábado. O evento marca o início da guarda de parte do acervo da artista pelo instituto.

Em duas fileiras de trabalhos, o espectador vê pequenas manchas ou rabiscos dispostos lado a lado, mais ou menos simetricamente —Gross fazia tudo no olho, sem usar marcações.

A simetria entre os sinais "é irregular, mas também tem um sentido quase de trabalho artesanal, da repetição que se faz igual mas é diferente", afirma a artista. "É uma ode, um elogio ao trabalho artesanal." De longe, não parece que nos papéis há desenhos produzidos por carimbos, mas isso é parte da graça do trabalho, diz ela.

Gross reconhece o aspecto crítico à ditadura da série, mas não a reduz a isso. Ela lembra que à época era comum seus contemporâneos se valerem de meios de uso cotidiano, como o carimbo e o xerox, para se expressarem.

Paulo Bruscky e Cildo Meireles produziram trabalhos com carimbos naquela mesma década, por exemplo, mas ambos são mais explícitos na acidez contra o regime —Meireles carimbou em vermelho os dizeres "quem matou Herzog?" em cédulas de dinheiro, questionando os militares sobre o desaparecimento do jornalista.

A exposição recupera também a trajetória da artista até chegar à série agora reapresentada. Seu primeiro carimbo data de 1968 e mostra, na cor roxa, uma mão dando um murro sobre a mesa. Mais tarde, ela partiu para a feitura de carimbos em verde e azul que reproduziam paisagens ao serem pressionados contra o papel.

Foi só depois que ela se desvencilhou de imagens mais figurativas e adotou as pequenas abstrações em preto. As formas, conta a artista, foram inspiradas em elementos das obras de Picasso, Matisse e de outros desenhos antigos que ela via em livros, reproduzidos muitas vezes em preto e branco.

Tela da série 'Carimbos', de Carmela Gross, de 1978
Tela da série 'Carimbos', de Carmela Gross, de 1978 - Romulo Fialdini

Carimbar possibilitava à artista a reprodução algo grosseira de uma ideia que nascia como um desenho sensível. "É como se fosse uma gravura, mas uma gravura simplificada, que tem esse caráter imediatista, de urgência", ela afirma, sobre os carimbos.

A coleção de carimbos em si ocupa uma parede inteira da exposição. Eles estão dispostos com a parte da borracha virada para o visitante, como se fossem entrar em ação. A solução expositiva serve para que os objetos "não pareçam objetos mortos em cima de uma mesa, mas tenham uma dignidade".

Carmela Gross: Carimbos

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