Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Rússia

Como 'O Mago do Kremlin' examina o cinismo e a manipulação na política

Ficção política serve para representar a vida ordinária quando ela é sacudida por crises

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Para que serve a ficção política? Para representar a vida ordinária quando ela é sacudida por crises. Um romance ou peça política acompanha personagens corriqueiros em meio a mudanças bruscas da história na qual estão imersos.

Os ficcionistas compensam a falta de acesso a líderes políticos reais com a imaginação artística. Criam situações e diálogos que, além de tornar críveis os mandachuvas, buscam dar conta de situações históricas complexas. No plano estético, o procedimento pode render.

É o que acontece com a peça "Rainha Lira", na qual Roberto Schwarcz investiga a revolta de 2013 e a ascensão de Bolsonaro. O procedimento pode também gorar. Como no romance "Agosto", de Rubem Fonseca, no qual o colapso do governo Vargas se dilui num thriller.

No centro da da cena um livro aberto é clareado por duas luminárias laterais. Em suas páginas imagens de figuras da política russa atual.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 7 de julho de 2023 - Bruna Barros

No plano comercial, deu-se o contrário. "Rainha Lira" nem foi encenada, ao passo que "Agosto" se tornou um bestseller instantâneo. Às vezes, contudo, a pertinência de certas obras não é decidida no presente imediato.

"O Rei da Vela", por exemplo, foi escrita por Oswald de Andrade em 1933, na esteira da grande crise de 1929, sendo encenada pela primeira vez só em 1967. A montagem de José Celso Martinez Corrêa respondia a outra crise, a da contestação aguda e de massa à ditadura militar.

A partir de então, "O Rei da Vela" entrou no cânone do teatro nacional. Prova disso foi o êxito, de público e crítica, da remontagem da peça, em 2017. Feita pelo mesmo José Celso, ela agora se nutria das crises do governo Temer. Em contrapartida, quem se lembra de "Agosto"?

É de se perguntar, então, o que significa o sucesso do romance "O Mago do Kremlin", do suíço-italiano Giuliano da Empoli, de 49 anos. Publicado no ano passado, ele chegou ao Brasil em seguida, numa boa tradução de Julia da Rosa Simões para a editora Vestígio.

Ganhou uma penca de prêmios na França, vendeu meio milhão de exemplares e teve mais de trinta traduções. Alguns críticos o festejaram. Outros torceram o nariz, disseram que é condescendente com Putin, senão simpático a ele.

Parte do sucesso do romance se deve à guerra na Ucrânia, ainda que tenha sido escrito antes da invasão. Mas a ocupação da Crimeia por tropas russas, em 2014, é um acontecimento central da trama, o que dirige a leitura para a guerra. Empoli foi visionário ou teve sorte.

Numa guerra, quem sobressai são os chefes: os políticos de proa, os generais, os donos do dinheiro, os quais a gente comum, inclusive autores, não conhece de perto. Sabe-se quem são Putin, os oligarcas e Prigojin, o chefão da milícia Wagner. Vistos de longe, são vultos.

Putin, Prigojin e oligarcas são personagens de "O Mago do Kremlin". O que o estrangeiro Empoli sabe deles é indireto. Apesar disso, o retrato que pinta é verossímil porque os estudou com denodo. Parece ter lido tudo a seu respeito, e entranha na trama tudo que aprendeu.

Formado em direito e política, ele foi secretário de cultura de Florença e conselheiro de Matteo Renzi, um oportunista profissional. É um quadro da elite europeia —professor universitário, participa de think tanks e da gerência da Bienal de Veneza— enfronhado na alta e na baixa política.

A formação do autor se cristaliza no mago do título do romance, Vadim Baranov, um cínico fascinante. Ele é neto de um aristocrata desbancado pela revolução e filho de um burocrata stalinista que tem medo de ser morto pelos superiores.

Por meio deles, "O Mago do Kremlin" conta um século da história russa, sob o prisma das mutações da elite. Mutações que acabam no próprio Baranov, que integrou um grupo de teatro de vanguarda e dirigiu um reality show antes de virar marqueteiro de Putin.

Ele entende de algoritmos, redes sociais, pesquisas de opinião, encenações para dizimar inimigos e mistificar a malta. Assim como o avô descria do czar, e seu pai de Stálin, não crê em Putin, que tem "a palidez marmórea da imortalidade.

"O Mago do Kremlin" é a ficção de estreia, e tardia, de Empoli. Com isso, o livro se ressente da inexperiência artística. Esquálida, a trama é quase um monólogo de Baranov ao narrador. Quem a redime é a prosa, cadenciada e reflexiva.

O desenlace também deixa a desejar. Nas últimas páginas, o livro converge para uma criança —a bisneta do aristocrata, neta do stalinista e filha do marqueteiro.

A aposta na continuidade da dominação é do autor, não de Baranov. É preciso que os anos passem para que a conclusão de "O Mago do Kremlin" se revele falsa ou verdadeira, manipulação ou arte.

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