Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Mario Sergio Conti
Descrição de chapéu
Livros Rússia

Em nova tradução, nojento 'Oniéguin' de Púchkin soçobra no crepúsculo

Romance em versos foi publicado durante o surto de criatividade da literatura russa do século 19

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Houve na Rússia de meados do século 19 um surto de criatividade. Num punhado de anos, que na história da literatura equivalem a um piscar de olhos, foram publicadas as obras capitais de Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov e Gógol.

Nas artes plásticas, a comparação cabível seria com o Renascimento. De uma hora para outra, escultores, arquitetos e pintores criaram as obras que ainda hoje moldam a sensibilidade ocidental. Na Rússia também, só que na literatura.

Leonardo, Michelangelo, Botticelli e os outros retornaram à Antiguidade greco-romana. Trabalharam numa quadra de progresso material acelerado. Estavam a serviço da opulência papal.

Sobre um fundo azul claro estão as silhuetas de dois homens. Os homens vestem roupas de época e estão virados um para o outro empunhando armas. Entre eles um projétil se desloca da esquerda para a direita. A ilustração é rodeada por desenhos orgânicos em cor preta sugerindo um ambiente externo. Acima da ilustração está escrito evguiêni oniéguin em carácteres cirílicos.
Ilustração de Bruna Barros para colna de Mário Sérgio Conti - Bruna Barros

Já a Rússia, arrolhada pelos tzares, estava atolada numa argamassa servil. São Petersburgo não era Roma. Foi do nada que brotaram "Os Irmãos Karamázov", "Guerra e Paz", "A Gaivota" e "Almas Mortas", livros a anos-luz da Igreja Ortodoxa.

Do nada, não. Em 1837, ficou pronto "Evguiêni Oniéguin", que Aleksandr Púchkin escrevia há 15 anos. No conteúdo, ele inaugura temas que serviram de tutano e nervo para as obras admiráveis lançadas nos anos seguintes. Na forma, "Oniéguin" é único; ou seja, extravagante.

É um romance em versos, tão singulares que ficaram conhecidos como "sonetos Púchkin". São estrofes com 14 tetrâmetros iâmbicos (baseados na duração das sílabas) e rimas em AbAbCCddEffEgg (as maiúsculas são femininas e paroxítonas; as minúsculas, masculinas e oxítonas).

Complicado? Sem dúvida, é um esquema infernal. Mas só para quem o usa. Púchkin deve ter suado sangue para manter o pique métrico e as rimas ao longo de 5.541 versos. Para quem o lê, "Oniéguin" é uma delícia.

Ou melhor: quem sabe russo diz que o livro é cristalino e encantatório. Você e eu, ignorantes no idioma, temos que recorrer às traduções. Como a publicada agora, feita por Rubens Figueiredo, escritor e tradutor tarimbado, em edição da Penguin-Companhia das Letras.

Sua tradução parece boa, se bem que a de Vladimir Nabokov —para o inglês— siga indispensável. Nem tanto pela tradução, que não é ritmada nem rimada, e sim pelo aparato crítico. E olha que, para Edmund Wilson, Nabokov não entendeu o beabá: que Oniéguin é "ruim" e "nojento"

O romance disseca quatro personagens. Evguiêni Oniéguin é um parasita que, contudo, Púchkin descreve com enorme simpatia. Um dia ele se cansa da esbórnia e se aquieta num ceticismo que considera superior, mas não passa de tédio conformado.

Tânia é uma moça reta que se apaixona pelo playboy. Escreve-lhe uma carta, suplica que a ame, e é rejeitada com frieza. Oniéguin é ambíguo, não se sabe se está sendo honesto ou sádico.

Liênski é um poeta atilado que o dândi tolera. Romântico, não é cético nem entediado. Ama a vivaz Olga e é correspondido. Às vésperas de seu casamento, os quatro personagens se encontram num baile cintilante. Oniéguin flerta às claras com Olga. Por quê?

Para se vingar da alegria alheia, por ressentimento e crueldade. Liênski o desafia para um duelo. Oniéguin poderia desculpar-se: sabia que Olga agira de boa-fé e continuava a amar o poeta fielmente. Todavia, diz ao amigo que está "sempre à disposição".

Na hora agá, poderia deixar que o outro atirasse primeiro, porém puxa o gatilho antes. Num último recurso, poderia mirar a perna do outro, mas atira para matar. (Um mês depois de publicar a versão definitiva de "Oniéguin", Púchkin morreu num duelo como o do livro).

O dândi tenta então seduzir Tatiana, mas é a hora "entre lobo e cão", expressão usada por Púchkin que significa crepúsculo: o lusco-fusco entre dia e noite no qual não se distinguem as feras dos bichos domésticos, o ciúme do amor, a feia realidade das ideias lindas.

É do breu desse conteúdo histórico que "Oniéguin" trata. Da classe que se crê ilustrada e vive à sombra do czar. De bailes fabulosos que se apoiam na massa de servos lanhados. Do surdo atrito entre Iluminismo e exploração. Da trama abafada de ideologia e alienação.

Voltando à forma, leitora. Púchkin teria se inspirado na versificação de certos poemas de La Fontaine e no andamento de "Don Juan", de Byron. Quem dá o tom, porém, é o narrador; ele lembra o de "Tristram Shandy", de Sterne.

O tipo à toa é chegado a uma digressão. Ora ironiza, ora é sério, ora acena à leitora. Fosse ele o autor disto, diria: coragem, coluna, conclua que o narrador de "Oniéguin" parece Bentinho e Brás Cubas; que os três nefastos dizem algo da Rússia e do Brasil d’antanho e d’hoje. Mas cadê coragem?

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.