Houve na Rússia de meados do século 19 um surto de criatividade. Num punhado de anos, que na história da literatura equivalem a um piscar de olhos, foram publicadas as obras capitais de Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov e Gógol.
Nas artes plásticas, a comparação cabível seria com o Renascimento. De uma hora para outra, escultores, arquitetos e pintores criaram as obras que ainda hoje moldam a sensibilidade ocidental. Na Rússia também, só que na literatura.
Leonardo, Michelangelo, Botticelli e os outros retornaram à Antiguidade greco-romana. Trabalharam numa quadra de progresso material acelerado. Estavam a serviço da opulência papal.
Já a Rússia, arrolhada pelos tzares, estava atolada numa argamassa servil. São Petersburgo não era Roma. Foi do nada que brotaram "Os Irmãos Karamázov", "Guerra e Paz", "A Gaivota" e "Almas Mortas", livros a anos-luz da Igreja Ortodoxa.
Do nada, não. Em 1837, ficou pronto "Evguiêni Oniéguin", que Aleksandr Púchkin escrevia há 15 anos. No conteúdo, ele inaugura temas que serviram de tutano e nervo para as obras admiráveis lançadas nos anos seguintes. Na forma, "Oniéguin" é único; ou seja, extravagante.
É um romance em versos, tão singulares que ficaram conhecidos como "sonetos Púchkin". São estrofes com 14 tetrâmetros iâmbicos (baseados na duração das sílabas) e rimas em AbAbCCddEffEgg (as maiúsculas são femininas e paroxítonas; as minúsculas, masculinas e oxítonas).
Complicado? Sem dúvida, é um esquema infernal. Mas só para quem o usa. Púchkin deve ter suado sangue para manter o pique métrico e as rimas ao longo de 5.541 versos. Para quem o lê, "Oniéguin" é uma delícia.
Ou melhor: quem sabe russo diz que o livro é cristalino e encantatório. Você e eu, ignorantes no idioma, temos que recorrer às traduções. Como a publicada agora, feita por Rubens Figueiredo, escritor e tradutor tarimbado, em edição da Penguin-Companhia das Letras.
Sua tradução parece boa, se bem que a de Vladimir Nabokov —para o inglês— siga indispensável. Nem tanto pela tradução, que não é ritmada nem rimada, e sim pelo aparato crítico. E olha que, para Edmund Wilson, Nabokov não entendeu o beabá: que Oniéguin é "ruim" e "nojento"
O romance disseca quatro personagens. Evguiêni Oniéguin é um parasita que, contudo, Púchkin descreve com enorme simpatia. Um dia ele se cansa da esbórnia e se aquieta num ceticismo que considera superior, mas não passa de tédio conformado.
Tânia é uma moça reta que se apaixona pelo playboy. Escreve-lhe uma carta, suplica que a ame, e é rejeitada com frieza. Oniéguin é ambíguo, não se sabe se está sendo honesto ou sádico.
Liênski é um poeta atilado que o dândi tolera. Romântico, não é cético nem entediado. Ama a vivaz Olga e é correspondido. Às vésperas de seu casamento, os quatro personagens se encontram num baile cintilante. Oniéguin flerta às claras com Olga. Por quê?
Para se vingar da alegria alheia, por ressentimento e crueldade. Liênski o desafia para um duelo. Oniéguin poderia desculpar-se: sabia que Olga agira de boa-fé e continuava a amar o poeta fielmente. Todavia, diz ao amigo que está "sempre à disposição".
Na hora agá, poderia deixar que o outro atirasse primeiro, porém puxa o gatilho antes. Num último recurso, poderia mirar a perna do outro, mas atira para matar. (Um mês depois de publicar a versão definitiva de "Oniéguin", Púchkin morreu num duelo como o do livro).
O dândi tenta então seduzir Tatiana, mas é a hora "entre lobo e cão", expressão usada por Púchkin que significa crepúsculo: o lusco-fusco entre dia e noite no qual não se distinguem as feras dos bichos domésticos, o ciúme do amor, a feia realidade das ideias lindas.
É do breu desse conteúdo histórico que "Oniéguin" trata. Da classe que se crê ilustrada e vive à sombra do czar. De bailes fabulosos que se apoiam na massa de servos lanhados. Do surdo atrito entre Iluminismo e exploração. Da trama abafada de ideologia e alienação.
Voltando à forma, leitora. Púchkin teria se inspirado na versificação de certos poemas de La Fontaine e no andamento de "Don Juan", de Byron. Quem dá o tom, porém, é o narrador; ele lembra o de "Tristram Shandy", de Sterne.
O tipo à toa é chegado a uma digressão. Ora ironiza, ora é sério, ora acena à leitora. Fosse ele o autor disto, diria: coragem, coluna, conclua que o narrador de "Oniéguin" parece Bentinho e Brás Cubas; que os três nefastos dizem algo da Rússia e do Brasil d’antanho e d’hoje. Mas cadê coragem?
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