Descrição de chapéu
Livros Semana de 1922

Oswald de Andrade surge como herdeiro cheio de dívidas em seus diários

Recheados de opiniões duvidosas e de uma fantasia nostálgica e ressentida, escritos vão da autocomiseração ao preconceito

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Alcir Pécora

Professor titular de teoria literária da Unicamp

Diário Confessional

  • Preço R$ 99,90 (560 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Oswald de Andrade
  • Editora Companhia das Letras

O alentado volume inédito do "Diário Confessional", de Oswald de Andrade, organizado pelo crítico Manuel da Costa Pinto, resulta da transcrição de seis cadernos manuscritos, produzidos no período de 1948 e 1954, marcados por aflições intermináveis de dinheiro.

Junto delas, há anotações para a coluna "Telefonema", no Correio da Manhã, e a série "A Marcha das Utopias", escritas para o Estadão, em 1953, assim como projetos de dilatar as memórias, muito além de "Um Homem sem Profissão: Sob as Ordens de Mamãe".

Há também avaliações estéticas (em geral, duvidosas, como ver em Gustavo Corção, o "maior romancista brasileiro do nosso tempo"; Tavares de Miranda, "realiza em poesia o que Clarice Lispector fez com a prosa"), e um acervo de opiniões, frequentemente levianas ("foi mais uma fita da marginal para voltar à pauta, o ‘suicídio’ de Pagu").

No entanto, predomina mesmo no conjunto de anotações a exasperada "luta" de Oswald contra as dívidas sempre crescentes a sua "angústia bancária" face aos problemas advindos da venda de terrenos do Sumaré; as obras de um prédio de apartamentos na rua Vitória; a hipoteca da casa de Maria Antonieta, sua mulher; a venda da coleção de quadros; o custo das viagens dos filhos pela Europa et cetera.

Em tudo, fica evidente a incompreensão de Oswald sobre a natureza dos negócios, os quais pretendia resolver de imediato, quase magicamente, contando, de uma parte, com os seus contatos nas altas rodas políticas e sociais —vale dizer, lidando com os mecanismos oligárquicos tradicionais do "favor" e mesmo tentando aplicar isso indiscriminadamente a Adhemar de Barros ou a Getúlio Vargas—, e, de outra, tendo consigo um impressionante "sentimento de império", no qual, como que por direito natural, cabia a ele ser, quiçá, "a maior fortuna de São Paulo".

Essa fantasia nostálgica e ressentida envenena as contas que faz, embaralhando tudo. Vai da autocomiseração ("ninguém quer saber de mim") a declarações reativamente excitadas (para não dizer logo xenófobas, como os negociantes –a "turcaiada", a "italianada", a "judiada"— o deixavam sem nada).

oswald de andrade
'Retrato de Oswald de Andrade', pintura de Tarsila do Amaral de 1923 pertencente ao acervo do Museu de Arte Brasileira - Reprodução

E, se lidava com dinheiro com modos de senhor traído pelos tempos, não admira que visse a própria família, alojada em apartamentos com aluguéis atrasados, com ares anacrônicos de casa-grande.

É o que existe residualmente quando menciona a "negrinha" que cuidava dos filhos de "cabecinhas loiras", ou os negros "que faziam cara feia", por "inveja da visita" que os patrões, a bordo de um Oldsmobile, faziam à "família da pajem". Daí também que o chorrilho de lamentações não garanta a empatia do leitor de hoje, muito mais sensível aos implícitos dos usos desses termos.

Na azáfama de planos de ocasião, tudo o trai e machuca, e não poucas vezes Oswald afirma chorar por não ser capaz de legar "aos seus" o mesmo que herdara dos pais. E, conforme se acumulam as dívidas, crescem tanto a hipocondria como as doenças reais, o pânico, a depressão. De resto, curiosamente, Oswald associa os maus resultados menos ao seu óbvio mau jeito com as finanças, do que à "caguira", o "encarniçamento" do azar contra ele.

O volume traz ainda dois outros conjuntos de escritos inacabados, "A Antropofagia como Visão de Mundo", de 1930, e "Semana de 22, Trinta Anos", composto de uma seleção de trechos dos cadernos de 1952.

Não me parece que a companhia volumosa das lamúrias do diário traga a eles algum ganho interpretativo, ao contrário. Talvez fossem mais valorizados se editados, respectivamente, com outras versões das teses antropofágicas —como aquela editada por Maria Eugenia Boaventura no volume "Estética e Política", o próprio manifesto et cetera— e com diversos outros escritos de Oswald sobre a Semana.

Confesso ter achado difícil suportar a leitura dos diários, tanto pelo que há neles de monótono e repetitivo, como pelo que há de alusivo e genérico. O próprio Oswald percebe isso, quando escreve que "este diário precisa ser completamente remanipulado, reescrito, senão não tem sentido nenhum, relendo-o, vi isso".

Fico me perguntando se, de fato, valia a pena publicar essas anotações e me lembrei da discussão acirrada que se fez, em Portugal, a propósito da sangria de publicações do baú de Fernando Pessoa. Para a qualidade do escritor, é certo que o diário nada acrescenta; para o homem, e sua mitologia libertária, é certo que faz mal.

Mas talvez, por isso mesmo, valha a publicação, desde que não se passe sem mediações das memórias rascunhadas à obra literária édita, que segue tendo interesse em seu experimentalismo linguístico e humorismo sagaz.

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