Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Mario Sergio Conti

Daniel Ortega faz na Nicarágua o que Bolsonaro queria e Lula vê um amigo

Ao invés de levantar a bandeira da democracia e da dignidade dos 'nicas', Itamaraty a entregou de mão beijada

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O Brasil não liga para a Nicarágua. Entende-se. Os dois países não fazem fronteira e o comércio entre eles é irrisório. A Nicarágua é menor que Altamira e sua população é pouco maior que a do Rio de Janeiro. Logo, danem-se os "nicas", a maneira como os nicaraguenses se referem a si mesmos.

Na arena internacional, a questão candente é a Guerra da Ucrânia. Afora a carnificina diuturna, o duelo entre Putin e a frente europeia comandada por Biden pode desandar em um embate nuclear. Mesmo sem bomba atômica, o desenlace na guerra terá implicações em todo o planeta.

Na cena latino-americana, também pouco importa a Nicarágua. O que interessa ao Brasil é a Venezuela, com a qual tem uma fronteira enorme. Fugindo de Maduro, 800 mil venezuelanos a cruzaram e tornaram mais difícil a já difícil vida em Roraima e no Amazonas.

A posição do Planalto quanto à Ucrânia e à Venezuela é esclarecida. No caso da guerra, advoga o cessar-fogo imediato e a negociação entre Zelenski e Putin. No da Venezuela, assinou uma nota condicionando o fim das sanções internacionais a eleições livres lá.

As posições oficiais e por escrito contrastam com a defesa oral que Lula faz de Maduro, vítima de "narrativas", e de Putin, a quem não chama de invasor. Não é língua solta. A ambiguidade é urdida com finura.

Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 4 de agosto de 2023 - Bruna Barros

O Itamaraty fala aos Estados Unidos, à Europa e à Faria Lima; o presidente a seus pares latinos e à esquerda saudosa de Stálin e Fidel. Quem dá o toque final nesse crochê diplomático é Celso Amorim, o assessor de Lula hábil no tricô com quatro agulhas.

Mas, em relação à Nicarágua, estão todos muito coesos no apoio a Daniel Ortega.

Ortega aderiu à Frente Sandinista de Libertação Nacional quando adolescente e veio a ser um dos seus dirigentes. Morreram 50 mil "nicas" na luta contra a ditadura de Somoza, um fantoche da Casa Branca destronado em 1979. Os sandinistas tomaram o poder, e Ortega foi eleito presidente.

Teve de enfrentar a revolta dos "contras" e o boicote econômico, ambos armados pela Casa Branca. A pobreza se alastrou e Ortega não se reelegeu. Voltou ao poder 21 anos depois —e nunca mais saiu.

Porque fez o que Bolsonaro pretendia: corrompeu a cúpula da polícia e das Forças Armadas; manietou o Supremo; reprimiu os dissidentes; reelegeu-se com eleições fraudadas. Na última delas, prendeu todos os candidatos de oposição e, com uma abstenção de 80%, seguiu presidente.

Seus desmandos provocaram um levante em 2018. Ele mandou a polícia e as milícias balearem os insurretos. Duas mil pessoas foram hospitalizadas; 800 presas; 355 mortas. Entre elas, a estudante pernambucana Raynéia Lima. A caça ao clero, jornalistas, indígenas e escritores é bestial.

Quatrocentos mil se exilaram. Não há liberdade partidária, sindical e de imprensa. A tortura é comum. Dos nove canais de TV, oito estão nas mãos de gente com o sobrenome Ortega. Sua mulher, Rosario Murillo, é vice-presidente. Na prática, a Nicarágua está sob estado de sítio.

No último Foro de São Paulo, Lula disse: "Entre amigos, a gente conversa pessoalmente; não faz críticas públicas porque elas interessam à extrema direita". O presidente, pois, é amigo de quem encarcera sandinistas históricos, de quem os baniu, cassou a nacionalidade, os bens e até mesmo as aposentadorias.

A economia de Ortega e Rosario não tem nada de progressista; é o neoliberalismo pró-apaniguados. Uma carta de 222 "nicas" desterrados pela dupla —entre eles sandinistas, feministas, intelectuais e jornalistas— pediu ao Foro: "Denunciem e condenem o regime de terror na Nicarágua".

O "Convescote de São Paulo" se fez de surdo. Imponente, proclamou: "Condenamos as sanções unilaterais contra Nicarágua e Venezuela". É uma empulhação. A Venezuela é alvo de 927 sanções econômicas, pesadas e gerais, que prejudicam em especial os pobres.

Já a Nicarágua comercia a seu bel-prazer com o exterior e recebeu empréstimos do FMI e do Banco Mundial. O que a Europa e Washington fizeram foi sancionar uns poucos figurões, entre eles Rosario, por violação dos direitos humanos.

Durante o Foro, o Itamaraty recebeu o chanceler da Nicarágua com pompa e circunstância. Sem provas, disse que alguns signatários da carta eram financiados pela Casa Branca.

Só o PSB, o PSOL e uma ala minoritária do PT protestam contra Ortega. Em vez de levantarem a bandeira da democracia e da dignidade dos "nicas", Lula, o Itamaraty e o Foro de São Paulo a entregaram de mão beijada aos bolsonaristas.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.