Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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'O Navio Fantasma' do antissemitismo vai de São Paulo a Gaza

Ópera que Richard Wagner compôs aos 27 anos tem última apresentação neste sábado

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A temporada lírica do Teatro Municipal termina neste sábado, 25, com um dó de peito. Será a última récita de "O Navio Fantasma", a ópera que Richard Wagner compôs aos 27 anos e inaugurou os procedimentos que vieram a fazer da sua música um monumento da cultura burguesa.

Embora raios e trovões estético-políticos tenham abalado a ópera desde sua estreia, há 180 anos, ela continua a servir de trilha sonora para a civilização que, apesar das luzes libertárias da razão, navega na treva dos preconceitos.

A montagem foi uma beleza. Ela esteve a cargo de Roberto Minczuk, o maestro brasileiro com maior experiência internacional. Ele obteve da Sinfônica Municipal, como escreveu Sidney Molina aqui na Folha, "um fluxo sonoro unitário". Não é pouco –a música de Wagner é mesmo uma queda livre num abismo sem fundo.

Embora a sonoridade tenha sido caudalosa, a orquestra paulistana não atingiu a potência das suas equivalentes de Paris, Viena ou Praga. Há duas hipóteses para isso. Primeiro, a performance: as sinfônicas europeias se beneficiam da tradição (mais longa) e das apresentações (mais frequentes). Depois, a acústica: a do Municipal é restrita de nascença.

Às vezes, sobretudo nos recitativos, o som algo acanhado trouxe para o primeiro plano a direção cênica de Pablo Maritano e a videografia de Matías Otálora, ambos argentinos.

Sem recorrer ao surrado recurso do gelo seco, eles realçaram o cinzento sombrio do mar norueguês, onde o capitão holandês atracou. Aqui e ali, os jorros de um vermelho sanguíneo evidenciaram a violência da fantasmagoria wagneriana.

Uma fotografia em preto e branco do Theatro municipal de São Paulo ocupa o centro da imagem. O fundo é preto, o edifício está todo envolto em névoa e no canto superior esquerdo há um raio que atinge o Theatro.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti de 24 de novembro de 2023 - Bruna Barros/Folhapress

A traquitana tecnológica manejada por Maritano e Otálora –luzes esbranquiçadas, vídeos do tamanho de telas de cinema, desenhos expressionistas– tem tudo a ver com o conceito de "obra de arte total", concebido por Wagner.

Ele quis criar espetáculos que estivessem além da ópera, conjugassem canto, drama, dança, poesia, efeitos plásticos, visuais e sonoros. Fez em Bayreuth um teatro para pôr sua ideia em prática.

A ideia vingou. Na política fascista, ela deu a tônica aos congressos nazistas, filmados por Leni Riefenstahl. Para Hitler, a guerra era o ápice da obra de arte total. Na indústria cultural, o conceito se materializa nos megashows de Taylor Swift, nas exposições imersivas de Michelangelo, em "Barbie", "Oppenheimer" e "Napoleão".

No elenco, Minczuk rompeu com o pano de fundo ideológico de "O Navio Fantasma": o racismo. Um de seus destaques foi a soprano Eiko Senda, nascida em Osaka. Outro, o baixo Luiz-Ottavio Faria, cria da zona norte carioca.

Ela faz Senta, com quem o capitão holandês quer se casar, e ele interpreta Daland, o pai dela. Ou seja, a dupla norueguesa foi encarnada por uma asiática e um negro. Antissemita fanático e ativista, Wagner deve ter se revirado no túmulo.

O libreto de "O Navio Fantasma", escrito pelo próprio compositor, se inspira numa lenda que ele ouviu numa acidentada viagem marítima à Inglaterra. Ela fala de um capitão holandês que, ao dobrar o Cabo da Boa Esperança, foi barrado por uma tempestade colossal.

O capitão praguejou e prometeu navegar até o fim do mundo para fazer a travessia. Ele a fez, mas foi condenado a perambular pelos mares até o mundo chegar ao fim literalmente, no Apocalipse. Como não há nada pior que viver para sempre, ficou eternamente deprimido. Para matar o tempo, saqueava.

O holandês só podia atracar, e por pouco tempo, de sete em sete anos. Se seduzisse uma mulher que lhe fosse fiel, se livraria do suplício de não morrer nunca. Estava na draga quando encontrou Daland e soube que ele tinha uma filha, Senta. Abastado, ofereceu-lhe tesouros para se casar com a moça.

Wagner escreveu num esboço autobiográfico que o holandês era "o Assuero do oceano". Eis aí, na alusão à lenda medieval do Judeu Errante, o coração antissemita da ópera. Assuero é o sapateiro judeu que viu Jesus carregando a cruz na frente de sua casa.

O Nazareno quis descansar, mas Assuero o apressou com brutalidade. Cristo prosseguiu na Via Crúcis, mas rogou uma praga: o sapateiro teria de andar sem parar até o Juízo Final. Poderia pousar só um dia em cada cidade, e seguir em frente rumo a lugar nenhum.

O verdadeiro nome do Holandês Voador é Judeu Errante. Como nos mitos do antissemitismo, blasfemou e zombou de Deus, roubou para enriquecer, salta de país em país sem se enraizar, corrompe os puros e compra o amor.

Com o massacre de inocentes em Gaza, ele voltou a vagar por aí.

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