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Artes Cênicas

'O Navio Fantasma' do Municipal alcança a densidade wagneriana

Interpretações corretas de Carla Filipcic e Hernán Iturralde se magnificam em som coeso da Orquestra Sinfônica Municipal

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O Navio Fantasma

  • Quando Ter. (21), qua. (22) e sex. (24), às 20h; sáb (25) e dom.(26), às 17h
  • Onde Theatro Municipal - pça. Ramos de Azevedo s/n
  • Preço De R$ 12 a R$ 158
  • Autoria Richard Wagner
  • Elenco Carla Filipcic e Hernán Iturralde
  • Direção Roberto Minczuk e Pablo Maritano

"O bem de terra", cantou Dorival Caymmi, é quem "fica na beira da praia quando a gente sai". No terceiro ato da ópera "O Navio Fantasma", de Richard Wagner, em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo, o coro dos marinheiros noruegueses confirma que cada um tem "o seu amor em terra". E tal como na canção do baiano, também na ópera do saxão "o bem do mar é o mar, é o mar, é o mar".

Ensaio da ópera "O Navio Fantasma" no Theatro Muncipal. Ensaio da ópera "O Navio Fantasma" no Theatro Muncipal, clássico de Richard Wagner, que estreou em 1843 - Mathilde Missioneiro/ Folhapress

A cena promove, enfim, o encontro das vozes masculinas com as femininas do Coro Lírico, e tem a função teatral de deixar o tempo passar, de nos tirar da trama principal antes do desenlace final.

Lançar-se ao mar, errar pelos oceanos por ciclos de sete anos, ou simplesmente navegar pode ser uma maldição, mas é também sinal de liberdade, do viver o desejo mais profundo, do inventar em nós mesmos o sonhador que se lança para além da solidão.

Nesse momento o coro já estava plenamente integrado à Orquestra Sinfônica Municipal, regida por Roberto Minczuk, e a própria orquestra já havia encontrado um fluxo sonoro unitário, capaz de acomodar e equalizar trompas, madeiras e cordas.

Nesse ponto da narrativa, também, a soprano Carla Filipcic, no papel de Senta, e o baixo-barítono Hernán Iturralde, que interpretou O Holandês, já haviam protagonizado um emocionante dueto no final do segundo ato. Ambos estiveram em cena no Municipal, no ano passado, em "O Cavaleiro da Rosa", atuando com a mesma categoria em personagens com características totalmente diversas.

Wagner não exige apenas altas demandas vocais, mas certa compreensão abstrata dos afetos, e uma consciência de como —para além das melodias— é a harmonia que gera sentidos e conduz a trama.

O elenco que cantou na estreia, na sexta-feira, dia 17, atuou com força e coesão: Kristian Benedikt fez um ótimo Erik; Luiz-Ottavio Faria foi Daland; Giovanni Tristacci encarnou o Timoneiro; e Regina Elena Mesquita, homenageada por seus 40 anos de carreira, interpretou Mary. O espetáculo, de 140 minutos, é apresentado sem intervalo.

"O Navio Fantasma" —ou "O Holandês Voador", no original em alemão— é o primeiro grande drama musical wagneriano. É a história de um marinheiro amaldiçoado, condenado a vagar eternamente pelos mares, e que tem chance de redenção apenas a cada sete anos –mas só no caso improvável de obter para si o amor incondicional de uma mulher.

Criar situações visuais artificiais durante a abertura instrumental de óperas é sempre arriscado, já que, nos melhores autores, o prelúdio orquestral é o momento em que o som puro se basta: é quando, de fato, o público se familiariza com os temas que o acompanharão ao longo do percurso teatral.

Pablo Maritano, que assina a direção cênica, encontra, entretanto, uma solução eficiente: a projeção de um fantasmagórico livro de quadrinhos, cujas páginas são viradas acompanhando –às vezes um tanto literalmente, é verdade– a velocidade da música.

Enquanto isso, Wagner cria o espaço sonoro para que o motivo de Senta encaixe-se na ressonância do célebre chamado de trompas que é a marca do Holandês, antecipando toda a história.

A partir daí o preto e branco dos quadrinhos e o próprio recurso das projeções se avulta, ondula-se, toma conta do palco.

Além disso, há um trânsito entre o teatro e técnicas provenientes do cinema: com câmeras e transmissão em tempo real, Maritano cria close-ups dos rostos dos personagens, o que aprofunda inteligentemente suas subjetividades sem renunciar a certa estaticidade cênica, que convém a Wagner. E nem mesmo clichês –como os olhos vermelhos a simbolizar o elemento satânico– fazem com que se perca a consistência da montagem.

Batizado no altar da Thomaskirche de Leipzig, a poucos passos do local onde está sepultado Johann Sebastian Bach, Wagner estreou "O Navio Fantasma" em 1843, quando trabalhava em Dresden, a pouco mais de 100 km de sua cidade natal.

Os elementos de seu futuro projeto estético já estão presentes em sua versão da história do lendário marinheiro errante, cujos ecos passam por Caymmi e chegam a Milton Nascimento e Ronaldo Bastos: "Para quem quer se soltar/ Invento o cais/ E sei a vez de me lançar"

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