Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Defender os ateus é defender a razão

Carências materiais não são compensadas por alívios imaginários

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Otavio Frias Filho dizia que seria bom ir todos os anos à Grécia. Para ver as paisagens onde alvoreceram a filosofia, o teatro e a arquitetura do Ocidente. Para revisitar as raízes de um modo de ver a vida que os impérios europeus vieram a impor às suas colônias.

O falecido diretor da Folha era avesso a aeroportos, filas e demais chatices inerentes a viagens. Formulava o augúrio impraticável porque fora arrebatado pelo azul safira do Mediterrâneo, o aroma de laranjais que antecede a chegada às ilhas, as ruínas solares dos trabalhos e dos dias de Homero, Sófocles e Aristóteles.

Um lugar especial na Grécia é Delfos, ao pé do Monte Parnaso. Dali se contempla o suave declive, povoado por oliveiras, que desce até o golfo de Corinto. Chegavam ali, ao grande porto, peregrinos vindos de todo canto, da Ibéria ao Helesponto. Iam reverenciar Apolo, o filho de Zeus.

Ficava lá o ônfalo –o umbigo do mundo– onde o oráculo de Delfos dava conselhos no templo de Apolo. O mais famoso deles, "conhece-te a ti mesmo", teria levado Sócrates a dizer "só sei que nada sei". Ao subir a colina, os romeiros deixavam ex-votos e dádivas às divindades olímpicas.

O que encanta em Delfos não são apenas a natureza e os escombros de obras magníficas. É a seguinte constatação: ninguém, no mundo todo, acredita mais em Zeus, Apolo ou outra potestade do Partenon. Não há uma única pessoa que faça hoje libações e sacrifique vestais ou carneiros às deidades gregas, e elas outrora assombraram povos inteiros por séculos.

A religião helênica está mortinha da silva. Isso permite um vaticínio a este oráculo paulistano: um dia, Meca, o Muro das Lamentações, o Vaticano –e, aqui, o Santuário de Aparecida e o Templo de Salomão, no Brás– só atrairão admiradores do engenho humano, e não crentes no além.

Duvida? Pois vá à Escandinávia. É a região do globo, rezam as pesquisas e estatísticas, mais próspera, igualitária e feliz. Nela se concentra a maior taxa de ateus. Os que não creem em deus são 72% dos noruegueses, 80% dos dinamarqueses e 85% dos suecos.

Ao lado esquerdo manchas em cores azuis e verdes criam formas de duas pessoas rezando. Caminhando para a direita, está desenhada em linha preta uma pequena pessoa de corpo esguio. Da cabeça da pessoa sai um balão de pensamento com gotas de tinta enfileiradas.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 24 de maio de 2024 - Bruna Barros/Folhapress

Não há relação comprovada entre ateísmo e bem-estar social. Mas dá o que pensar o fato de que, no último Censo, só 8% dos brasileiros tenham dito não ter religião. São 15,4 milhões de pessoas; bem mais que os espíritas (1,4 milhão) e os adeptos do candomblé e da umbanda (588 mil).

Para os 92% religiosos, os 8% descrentes são uma minoria má e perversa. Expressiva em números absolutos, ela é pacífica e passiva. Aceita de cabeça baixa que as instituições e meios de comunicação, a cultura e as artes os discriminem e façam propaganda de crendices continuamente.

Em teoria, o Estado é laico desde 1891, quando a classe proprietária e seus tentáculos armados –Exército, Marinha e polícias– impuseram a primeira Constituição republicana à massa de agregados e ex-escravos. Na prática, a separação entre religiões e Estado é uma farsa.

A Constituição atual anuncia já no preâmbulo que foi feita "sob a proteção de Deus". Entra-se no plenário do STF e se topa com a imagem de um homem exangue, sangrando em troncos transversais. A mesma figura de mau gosto adorna o gabinete do presidente da República. É um abuso.

Está firme na cadeira? Então escuta esta: deus não existe. É uma invenção compensatória. Quando falta o que comer e vestir, onde amar e trabalhar em paz, alguns compatriotas recorrem à entidade que seria capaz, se não de prover suas carências, de ao menos servir de consolo.

Com um mínimo de lógica, contudo, conclui-se que não há uma mísera prova disso. A ideia de deus persiste porque na sociedade de consumo bilhões não consomem. As religiões cumprem nela a função de dar um alívio imaginário a quem não o tem na vida real e material.

Os iluministas do século 18 viram no fim da crença em deuses um passo para que a razão vença os mitos. Com perspectivas diferentes, dois dos seus herdeiros, ambos de origem judaica, defenderam o ateísmo. Para Marx, a religião era o coração de um mundo sem coração, o ópio do povo. Para Freud, uma neurose obsessiva da humanidade.

Os ateus estão acoelhados no Brasil. Silenciam ante o avanço da mescla deletéria de política e religião que tanta destruição causou e causa –vide as guerras entre católicos e protestantes na Europa dos séculos 16 e 17 e o atual morticínio que Israel perpetra em Gaza.

Defender os ateus é defender a razão, a única via para que a humanidade supere as carências que geram a obscuridade religiosa.

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