Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Maria Fernanda Cândido dá vida às crises de 'A Paixão Segundo G.H.'

Filme com direção de Luiz Fernando Carvalho é melhor do que o romance da autora Clarice Lispector no qual ele se baseia

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O filme "A Paixão Segundo G.H." é melhor que o romance no qual se baseia. É com imagens límpidas que o diretor Luiz Fernando Carvalho dá materialidade às opacas abstrações de Clarice Lispector.

O diretor é fiel à prosa turva e maçante da escritora. Tampouco barateia a trama, inventando falas ou personagens. O que o filme faz é acentuar cenas e temas para que se tornem os nervos da trama.

A "Paixão" do título não diz respeito ao amor romântico exacerbado. Refere-se aos Evangelhos, à via-crúcis do Nazareno, à sua morte inevitável para redimir os pecados da humanidade.

G.H., interpretada por Maria Fernanda Cândido, é uma escultora que vive no topo de um prédio de frente para o mar, no Rio. As duas letras, para alguns estudiosos, abreviariam "gênero humano". G.H. serviria de súmula para a humanidade, a parte que explicaria o todo.

As letras poderiam significar também "growth hormone", o hormônio do crescimento, proveniente da glândula do tamanho de uma ervilha na base do cérebro. A súbita maturação da escultora seria produto de um órgão alheio à consciência e à razão –o coração selvagem da vida.

Por fim, G.H. talvez seja uma alusão sibilina à ordem alfabética: depois do gê vem sempre o agá. Assim, a protagonista estaria submetida, como todos os humanos, aos constrangimentos e automatismos da linguagem. É a linguagem que nos diz, e não o contrário.

A ilustração, feita a mão com pinceladas agitadas contém os tons de azul, verde água, preto, e cores terrosas. Ao centro uma mulher do tronco para cima trabalha manipulando um vaso de terra. Em volta do vaso alguns objetos e uma grande massa de terra. A mesa é verde àgua. O fundo é feito de muitas pinceladas de azul e branco.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mario Sergio Conti de 12 de abril de 2024 - Bruna Barros/Folhapress

Nenhuma explicação convence porque a esfíngica Clarice embute na sua ficção enigmas indecifráveis. É um jeito de espicaçar a imaginação de leitoras, de entreter críticos literários dados a especulações.

O filme conta algumas horas da vida de G.H. Ela está sozinha, toma o café da manhã, faz bolinhas com miolo de pão, devaneia e vai arrumar o quarto da empregada, que se despedira na véspera. Ao contrário da suja desarrumação que esperava, ele está um brinco.

Ela vê que a empregada fizera um desenho na parede. Ao perceber que a mulher tinha vida própria, lembra que ela se chamava Janair (feita por Samira Nancassa, imigrante da Guiné-Bissau sem formação de atriz). Irrita-se, chama-a de rainha africana, estrangeira, inimiga; raspa o desenho.

G.H. topa com uma barata no armário e leva um baita susto. Seguem-se cenas e mais cenas de um embate de gestos tensos entre a mulher fora do prumo e o inseto com asas, mas que se arrasta. O bicho mexe as antenas e vomita uma gosma amarelada. A pessoa grita e ensaia atacá-lo.

O desfecho da dialética de fascínio e repulsa explica a epígrafe do romance, do historiador da arte renascentista Bernard Berenson: "Uma vida plena pode ser aquela que atinja uma identificação tão completa com o não-eu que não haja nenhum eu para morrer". É complicado.

G.H. não tem um chilique, mas uma crise metafísica. A raiz do colapso é ambígua porque sua verborragia não é argumentativa. É um palavrório baço que conflui para as últimas frases da personagem: "A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro".

A ambiguidade brota do peso que Maria Fernanda Cândido põe nos termos sociológicos empregados de passagem por G.H.: classe, superestrutura e invisibilidade, referindo-se ao ocultamento social de Janair. A ênfase aponta para outra crise, a da razão burguesa, mascarada pela espiritualidade da escultora.

Luiz Fernando Carvalho politiza. Como o romance é de 1964, ele faz com que G.H. folheie uma revista com títulos e fotos que mostram a movimentação de tropas no dia 31 de março. Na trilha sonora, o ruído de helicópteros se mescla à música do Hino à Bandeira.

O diretor pregou na porta do quarto de Janair um desenho à mão da bandeira nacional. A imagem parece dizer que tudo bem com a crise existencial da grã-fina, mas a mulher brasileira real mora num quartinho e veste um uniforme escuro como sua pele, que a torna invisível à patroa.

A imaginação de Carvalho é eminentemente visual. É com imaginação que, dispondo de um orçamento ridículo –R$ 2 milhões–, fez um filme cuja beleza não tem paralelo no cinema nacional recente.

A sua estética está a serviço de Maria Fernanda Cândido. Para comparar a interpretação dela em "A Paixão Segundo G.H." seria preciso voltar à de Renée Falconetti em "A Paixão de Joana D’Arc", obra-prima do cinema mudo dirigida por Carl Dreyer há quase cem anos.

Como a atriz francesa, Maria Fernanda Cândido está quase sempre em primeiro plano. Suas expressões, lágrimas e sorrisos dão vida a todas as nuances de G.H. Às vésperas de completar 50 anos, chegou a hora da estrela.

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