Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Em 'De Lua', Ná Ozzetti e Luiz Tatit buscam o consolo do canto que encanta

Eles retomam agora a parceria em CD que traz lúcidos e novos lances dos dois

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Ná Ozzetti e Luiz Tatit tiveram a boa ideia de compor uma epopeia da Pauliceia. A estreia foi no Sesc Pompeia, colmeia para onde volta e meia sua plateia volta. Ainda bem que a melopeia está também em "De Lua", um álbum com dez canções dos dois, a metade inéditas.

O disco abre alas com "Boa Ideia", canção que é uma odisseia de rimas nada plebeias. Com melodia de Ná e letra de Tatit, ela fala da São Paulo que, de tão engarrafada, empacou de vez. Mas, loucos para se locomover, pouco a pouco os paulistanos vão a Pompeia. Ali, um clamor começa pelos cantos, contamina todos e vira coro municipal.

O canto comunitário livra a cidade da paralisia e ela chora de alegria porque agora é livre. Mas aonde vai São Paulo? Pouco importa. O que conta é a lira heroica dos que destravam as ruas atravancadas, compõem a canção que as liberta e celebram a utopia do convívio coletivo harmônico.

Contada assim, "Boa Ideia" perde a graça, vira assunto, análise. Fica faltando o macio encaixe de melodia e letra, música e fala, som e sentido. Fica faltando o crucial, a canção. Sem canto não há encanto, nem a congregação sob a batuta de um menestrel que conclama: ouvidos, uni-vos!

Tatit e Ná são produto do tempo em que havia na televisão mais canções do que novelas: Jovem Guarda, festivais vários, O Fino da Bossa e Divino, Maravilhoso. As canções davam ritmo à cultura. Cabia de tudo nelas, do samba ao sertanejo, da bossa nova ao rock.

A dupla cancionista se agregou nos anos 1970 ao Rumo de Música Popular, um grupo de universitários que fazia canções experimentais. Era uma vanguarda que tinha a retaguarda como resguardo, que se embalava com as canções da era áurea e delas tirava seu rumo.

Na lateral esquerda estão desenhadas em linhas a parte de dois rostos com as bocas abertas. Ao centro uma nuvem de tinta colorida cresce e, direção ao lado direito, onde estão desenhadas algumas orelhas.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti de 17 de maio de 2024 - Bruna Barros/Folhapress

O teórico da turma era Tatit. Ambidestro, estudava linguística na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e música na Escola de Comunicações e Artes, ambas na USP. No cerne de suas ideias está a noção de que a fala tem melodia —conforme o que quer dizer, o falante sobe ou desce a modulação, espicha ou abrevia fonemas.

Assim como na fala, a canção tem menos a ver com a literatura, e mesmo com a música, e mais com a entoação, o recurso sonoro que organiza o discurso oral.

É fácil notar isso em "Conversa de Botequim", de Noel Rosa, um ídolo de Tatit: "Seu garçom faça o favor de me trazer depressa/ uma boa média que não seja requentada/ um pão bem quente com manteiga à beça/ um guardanapo e um copo d’água bem gelada".

As primeiras canções do Rumo levavam esse princípio a ferro e fogo. Provocavam estranhamento, um efeito que o grupo procurava, mas que também o distanciava dos imperativos da indústria cultural. Não obstante, o Rumo teve um público devoto –paulistano e uspiano– até acabar, em meados dos anos 1990.

Ná e Tatit fizeram carreira solo. Ela gravou divinamente o repertório de Carmen Miranda, joias do cancioneiro e hits de Rita Lee, outra paulistana da gema. E ele ampliou o escopo da sua fala cantada, cujos picos são "Essa É pra Acabar", "Depois Melhora" e "Felicidade".

Eles retomam agora sua parceria em "De Lua", que traz lúcidos e novos lances dos dois. Estão no CD as sutis variações vocais de Ná e os achados verbais de Tatit, como "a fauna e a flora/ estão fora de si/ falta foca/ falta mico/ falta mata/ até palmito".

O CD sai numa quadra em que a canção não está mais no centro da cultura. A ideia de álbum —um corte no repertório com intenção estética— deu lugar às playlists, coletâneas que os consumidores montam.

Nunca se fizeram tantas canções, mas não por desígnio dos artistas, e sim porque a indústria precisa lançá-las continuamente e logo trocá-las por outras para abastecer o mercado. Efêmeras por natureza, as canções se sucedem sem que o ouvinte consiga retê-las na mente.

Vivemos tempos rombudos, de canções ribombantes. Compare-se o clip de Annita no candomblé, ou o show de Madonna em Copacabana, com Ná cantando que o "dengo é como um pingo de dendê".

O conceito de vanguarda se esvaneceu. Tatit tornou consciente o canto-fala, mas o que vingou foi o rap, que se escora só nas letras, de denúncia ou afrontamento. Faça-se um outro cotejo, o da braveza de um rap de Mano Brown com a leveza de Tatit ao cantar "da cabocla/ à perereca/ da biboca/ até a peteca".

Qual é melhor? A pergunta é descabida porque, como dizia um falecido compositor cearense, o novo sempre vem —e mormente vence. Ainda assim, restam as pérolas aos poucos de Ná e Tatit, os consolos da arte pela arte.

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