Quis o acaso que estejam em cartaz dois filmes sobre cantoras surgidas na mesma época, "Meu Nome É Gal" e "Elis & Tom - Só Tinha de Ser com Você".
Ambos se passam há mais de meio século, quando o público ao qual se destinam era jovem. Por isso, às vezes se escuta no cinema um suspiro nostálgico: "bons tempos, aqueles".
"Meu Nome É Gal" é uma ficção que mostra a chegada ao Rio de uma baiana acanhada de 20 anos. Discípula de João Gilberto, suave e sensível, ela cantava músicas de amigos de Salvador.
Veio então a virada. Gal passou a cantar forte, a gritar. Adotou gestos incisivos. Vestiu-se com extravagância. Ficou sensual. Com três canções – "Baby", "Divino, Maravilhoso" e a do título do filme – encarnou os tempos de rebeldia e explosão pop.
As diretoras Dandara Ferreira e Lô Politi jogam tudo isso na tela sem parar para pensar. Os diálogos doem no ouvido, de tão duros. O elenco encarna clichês ambulantes, e não pessoas. Sem individualidade, os tropicalistas são diluídos num mingau.
Gal é apequenada. Sua voz insurgente, mas cristalina e meiga, é substituída pela da atriz Sophie Charlotte, fria como um pepino. O filme entedia até as últimas cenas, quando a Gal real surge, esplendorosa. Num breve instante, ela anula a apatia contagiante que veio antes.
Afora ela, só se salva Luis Lobianco. O ator faz do empresário Guilherme Araújo uma figura ambígua, que oscila entre o palco e a bilheteria, a arte e o comércio, a política e o mercado. Mas, como o roteiro inviabiliza o pensamento, ele some sem maiores explicações.
É também um empresário que se destaca em "Elis & Tom - Só Tinha de Ser com Você", um filme antagônico a "Meu Nome É Gal". Seu diretor, Roberto de Oliveira, era empresário de Elis em 1974. Ele teve a ideia de que a cantora fizesse um disco com Tom Jobim.
Oliveira explica no início do documentário que, por ter cantado nas Olimpíadas do Exército, Elis atraíra a ira do público que se opunha à ditadura. Achava que poderia conquistá-lo se contracenasse com Jobim. A finura dele deletaria a grossura dela.
Já Jobim estava no ostracismo, em Los Angeles. Fizera um disco de vanguarda, "Matita Perê", que encalhara. Interessava-lhe aproximar-se de Elis para chegar a seus fãs. Fizeram o disco não por razões estéticas, mas de marketing. Uma queria prestígio; o outro, popularidade.
A gravação do disco foi também arquitetada por Roberto de Oliveira, que a filmou e guardou as imagens por quase 50 anos. Esse material é o sol de "Só Tinha de Ser com Você", em torno do qual gravitam depoimentos sobre estética e negócios, inovação e comodismo, vida e arte.
O enorme impacto dessas imagens está no próprio Jobim. Com verve e cheio de swing, ele parece ter menos que seus 47 anos. Nas cenas com Sinatra, lembra Alain Delon no auge. Nega sem convicção o que sua gargalhada admite: ter dito que Elis era uma gaúcha caipira que cheirava a churrasco.
Ela odiava a bossa nova. Achava que era coisa de gente que não sabe cantar. Era pleonástica, pegajosa, hiperbólica na voz e no gestual de quem nada de costas. Fechava os olhos para simular emoção e gargalhava quando queria demonstrar alegria, o que automatizava as reações do público.
Pelo contrato, Elis teria a palavra final sobre o disco. Ela decidiu que o marido, César Camargo Mariano, faria os arranjos, e este disse que usaria piano elétrico. Jobim ficou pasmo. Queria que Claus Ogerman, que lapidara "Matita Perê", cuidasse dos arranjos. E não cogitava usar piano elétrico.
"Só Tinha de Ser com Você" relata com sobriedade os atritos em torno do disco. É só depois de muito pesquisar que insinua, por meio dos entrevistados, a conclusão: o disco é uma obra-prima que beneficiou Elis e Tom. Com certeza os ajudou, mas mais ela, a bijuteria, do que ele, o diamante.
Quanto a ser uma obra-prima, é discutível, apesar de o seu carro-chefe ser "Águas de Março", que Chico Buarque considerou "o samba mais bonito do mundo". Reiterando o verbo "ser", e pontilhado de substantivos concretos, o samba junta o erudito e o popular, o sonho e a realidade.
Contudo, a interpretação definitiva de "Águas de Março" é a de Jobim sozinho em "Matita Perê", seu disco cheio de cellos, violinos, contrabaixos, flautas e violas; de alusões a Olavo Bilac, Drummond, Mario Palmério e Guimarães Rosa.
É com harmonias angelicais, ambientalismo avant la lettre, cercado por esses artistas, e não Elis, que Jobim vislumbra a "promessa de vida no teu coração".
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