Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Uma ficção apequena Gal Costa e um documentário engrandece Tom Jobim

Dois filmes sobre cantores da mesma época estão em cartaz: 'Elis & Tom - Só Tinha de Ser com Você' e 'Meu Nome É Gal'

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Quis o acaso que estejam em cartaz dois filmes sobre cantoras surgidas na mesma época, "Meu Nome É Gal" e "Elis & Tom - Só Tinha de Ser com Você".

Ambos se passam há mais de meio século, quando o público ao qual se destinam era jovem. Por isso, às vezes se escuta no cinema um suspiro nostálgico: "bons tempos, aqueles".

"Meu Nome É Gal" é uma ficção que mostra a chegada ao Rio de uma baiana acanhada de 20 anos. Discípula de João Gilberto, suave e sensível, ela cantava músicas de amigos de Salvador.

Veio então a virada. Gal passou a cantar forte, a gritar. Adotou gestos incisivos. Vestiu-se com extravagância. Ficou sensual. Com três canções – "Baby", "Divino, Maravilhoso" e a do título do filme – encarnou os tempos de rebeldia e explosão pop.

As diretoras Dandara Ferreira e Lô Politi jogam tudo isso na tela sem parar para pensar. Os diálogos doem no ouvido, de tão duros. O elenco encarna clichês ambulantes, e não pessoas. Sem individualidade, os tropicalistas são diluídos num mingau.

Num fundo branco fitas de cinema se entrelaçam criando um grande nó no centro da imagem.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti de 4 de novembro de 2023 - Bruna Barros/Folhapress

Gal é apequenada. Sua voz insurgente, mas cristalina e meiga, é substituída pela da atriz Sophie Charlotte, fria como um pepino. O filme entedia até as últimas cenas, quando a Gal real surge, esplendorosa. Num breve instante, ela anula a apatia contagiante que veio antes.

Afora ela, só se salva Luis Lobianco. O ator faz do empresário Guilherme Araújo uma figura ambígua, que oscila entre o palco e a bilheteria, a arte e o comércio, a política e o mercado. Mas, como o roteiro inviabiliza o pensamento, ele some sem maiores explicações.

É também um empresário que se destaca em "Elis & Tom - Só Tinha de Ser com Você", um filme antagônico a "Meu Nome É Gal". Seu diretor, Roberto de Oliveira, era empresário de Elis em 1974. Ele teve a ideia de que a cantora fizesse um disco com Tom Jobim.

Oliveira explica no início do documentário que, por ter cantado nas Olimpíadas do Exército, Elis atraíra a ira do público que se opunha à ditadura. Achava que poderia conquistá-lo se contracenasse com Jobim. A finura dele deletaria a grossura dela.

Já Jobim estava no ostracismo, em Los Angeles. Fizera um disco de vanguarda, "Matita Perê", que encalhara. Interessava-lhe aproximar-se de Elis para chegar a seus fãs. Fizeram o disco não por razões estéticas, mas de marketing. Uma queria prestígio; o outro, popularidade.

A gravação do disco foi também arquitetada por Roberto de Oliveira, que a filmou e guardou as imagens por quase 50 anos. Esse material é o sol de "Só Tinha de Ser com Você", em torno do qual gravitam depoimentos sobre estética e negócios, inovação e comodismo, vida e arte.

O enorme impacto dessas imagens está no próprio Jobim. Com verve e cheio de swing, ele parece ter menos que seus 47 anos. Nas cenas com Sinatra, lembra Alain Delon no auge. Nega sem convicção o que sua gargalhada admite: ter dito que Elis era uma gaúcha caipira que cheirava a churrasco.

Ela odiava a bossa nova. Achava que era coisa de gente que não sabe cantar. Era pleonástica, pegajosa, hiperbólica na voz e no gestual de quem nada de costas. Fechava os olhos para simular emoção e gargalhava quando queria demonstrar alegria, o que automatizava as reações do público.

Pelo contrato, Elis teria a palavra final sobre o disco. Ela decidiu que o marido, César Camargo Mariano, faria os arranjos, e este disse que usaria piano elétrico. Jobim ficou pasmo. Queria que Claus Ogerman, que lapidara "Matita Perê", cuidasse dos arranjos. E não cogitava usar piano elétrico.

"Só Tinha de Ser com Você" relata com sobriedade os atritos em torno do disco. É só depois de muito pesquisar que insinua, por meio dos entrevistados, a conclusão: o disco é uma obra-prima que beneficiou Elis e Tom. Com certeza os ajudou, mas mais ela, a bijuteria, do que ele, o diamante.

Quanto a ser uma obra-prima, é discutível, apesar de o seu carro-chefe ser "Águas de Março", que Chico Buarque considerou "o samba mais bonito do mundo". Reiterando o verbo "ser", e pontilhado de substantivos concretos, o samba junta o erudito e o popular, o sonho e a realidade.

Contudo, a interpretação definitiva de "Águas de Março" é a de Jobim sozinho em "Matita Perê", seu disco cheio de cellos, violinos, contrabaixos, flautas e violas; de alusões a Olavo Bilac, Drummond, Mario Palmério e Guimarães Rosa.

É com harmonias angelicais, ambientalismo avant la lettre, cercado por esses artistas, e não Elis, que Jobim vislumbra a "promessa de vida no teu coração".

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