Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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'Bambino a Roma' busca as raízes de um ego e do Brasil

Romance de Chico Buarque é recriação da infância na qual a alegria dá o tom

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O protagonista e narrador de "Bambino a Roma", o novo romance de Chico Buarque, é um menino que perambula por três idiomas e ambientes de uma cidade estrangeira. É nela, em meados dos anos 1950, que forma sua identidade.

Fala português em casa com a família; em inglês com os colegas e professores de uma escola americana; em italiano na rua com amigos e passantes. Topa o que der e vier, vive com intensidade e sem dramas.

Uns o chamam de Brasiliano, outros de Francesco e ele diz que é Frank, "mas o apelido não pegou". Embora o nome não seja assumido, fica implícito que se chama Francisco, Chico. A partir do título, é tão somente um bambino, um garoto qualquer, se bem que forasteiro.

Chico Buarque transforma em literatura as vivências do moleque porque toda criança é um tanto estrangeira —tem de se virar num mundo até então desconhecido. O personagem aprende línguas, descobre a cidade, forja a personalidade. "Bambino a Roma" é um romance de formação.

Embora sua mãe lhe dê um diário para anotar as aventuras romanas, ele prescinde do registro no calor da hora. Deixa o tempo passar para que suas lembranças se sedimentem e possa, 70 anos depois, trabalhá-las artisticamente.

Sorte nossa ter sido assim, pois o resultado é uma recriação da infância na qual a alegria dá o tom. A prosa substantiva e ágil encadeia imagens da felicidade plena, as da aurora da vida. Como diz Deus, também conhecido como Proust: "Os verdadeiros paraísos são os que perdemos".

Sem saudade nem lamúria, o romance desfila as madalenas de tempos idos e perdidos: chutar a bola de capotão, espiar a irmã nua, andar de ambulância com o apêndice supurado, temer o papa caquético, pedalar a bicicleta niquelada, ter as primeiras ereções, comer mexerica, apaixonar-se.

Ainda que o romance não tenha nada a ver com a canção, a justaposição acelerada de imagens fantasiosas lembra um pouco "João e Maria", a valsinha de Sivuca para a qual Chico Buarque fez a letra:

"Agora eu era o herói

e meu cavalo só falava inglês.

A noiva do caubói

era você além das outras três."

Livro raro na literatura nacional, "Bambino a Roma" não é único. Dando o devido desconto à assimetria da situação de um e outro –uma capital europeia no século 20, uma roça mineira no 19–, "Bambino a Roma" tem um quê de "Minha Vida de Menina", o diário de Helena Morley.

A ilustração é dividida horizontalmente em duas partes. A primeira, de baixo, representa parte do rosto de um homem em tons amarelos e azuis. A parte de cima é clara e sai do topo da cabeça deste homem junto com pequenos desenhos em linhas pretas: uma mexerica descascada, um quadro com a imagem de um papa, um garoto de bicicleta e um mapa da Itália.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti de 9 de agosto de 2024 - Bruna Barros/Folhapress

Eles compartilham a sintaxe sem floreios e o léxico trivial. A prosa modernista, um achado no livro de Helena Morley, comprova sua permanência e pertinência no de Chico Buarque.

Há outra afinidade entre os livros. Como se fossem etapas da formação do ego, o enredo de ambos põe em primeiro plano as estrepolias na infância. Mas o que se vislumbra, no conteúdo e na montagem do enredo, é a busca de outras raízes, as do Brasil.

Essa articulação é doméstica e explícita em "Bambino a Roma". O menino, fanático pelos livros de Emilio Salgari, vai a uma grande livraria procurar as aventuras de Sandokan e de Yolanda, a Filha do Corsário Negro.

Um funcionário o deixa de lado para atender um fã de Gramsci, o teórico do atraso capitalista. Fuça as prateleiras e encontra "Alle Radici del Brasile", a tradução de "Raízes do Brasil". Diz quatro vezes "é o livro do meu pai!"; compra Sergio Buarque de Holanda em vez de Salgari.

O bambino compara várias vezes o Brasil à Itália. Conta que as cozinheiras no seu apartamento "se sucediam rapidamente e vinham todas da Sardenha". Gostava mais da que partira, "sentia falta da anterior a anterior" e conclui que nenhuma era tão boa quanto Aparecida.

Era uma preta bonita que fazia o melhor feijão preto de São Paulo, lavava, pendurava e passava as roupas, varria os quartos, arrumava as camas, regava as plantas e esfregava o chão. "Não me lembro de mim antes dela", escreve.

Não se trata apenas de lembranças. O Brasil chega ao garoto por meio do cinema, da televisão e do toca-discos. Escuta marchinhas de Carnaval. Assiste a "O Cangaceiro" e canta "Olé mulher rendeira/ Olé mulher renda".

Acompanha na vitrine de uma loja a transmissão do jogo do Brasil contra a Hungria, na Copa de 1954. Informa aos em torno que "o centroavante Índio não morava na selva" e Djalma Santos e Nilton Santos não eram irmãos, "tanto que um era preto e o outro, branco".

No final do romance, o narrador deixa de ser menino de uma hora para outra e volta a Roma. É um adulto amargo que deambula a esmo. Como o país de onde veio, perdeu a poesia da infância, não sabe quem é nem aonde vai.

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