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Chico Buarque atinge grande momento autoral em 'Bambino a Roma'

Livro que mistura ficção com memórias de infância é o encontro da experiência de um homem vivido com a troça de um menino

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Laura Erber

Escritora, editora e coordenadora do programa de pós-doutorado do Instituto Internacional de Estudos Asiáticos da Universidade de Leiden

Bambino a Roma

  • Quando Lançamento em 1° de agosto
  • Preço R$ 79,90 (168 págs.); R$ 29,90 (ebook)
  • Autoria Chico Buarque
  • Editora Companhia das Letras

Este é um livro sobre uma infância e uma cidade, mas talvez seja, mais ainda, um livro sobre o chamado século breve, que foi também o século da multiplicação das formas de narrar a vida e da descoberta da relação entre a memória involuntária e a literatura.

"Bambino a Roma", de Chico Buarque, anunciado como ficção, é literatura filha temporã do século passado, prenhe de história e memória, uma época que já podemos olhar pelo retrovisor.

menino de blusa de manda comprida e bermuda escura, com sapatos e cabelo penteado, em fotografia em preto e branco
Retrato de Chico Buarque com cerca de dez anos de idade, em Roma - Bel Pedrosa/Divulgação

O livro se abre com a bola de couro de um menino, logo passa aos vômitos no navio e à ancoragem numa Itália ainda cheirando a guerra. E é a esse menino sem grandes grilos que o adulto narrador se cola, revezando com ele a liderança no que conta, de vez em quando refletindo por cima do olhar infantil.

Numa entrevista em que foi perguntado sobre o filho, então um jovem compositor, Sérgio Buarque de Holanda dizia que Chico era um rapaz normal, fazendo questão de desmistificar a ideia de que fosse especialmente tímido ou de que por trás de todo talento artístico há de haver uma alma torturada.

Desde a abertura, Chico nos enreda com descrições precisas, céleres, e um senso de humor e leveza —estratégicos e não fúteis— raros na literatura de agora, em que muito se busca o efeito de intensidade dolorosa.

É o mundo das sensações de uma criança de repente afastada de sua vida brasileira, sem saber bem ao certo se sua aventura seria provisória num país onde o mistério do antigo se misturava aos sinais de precariedade do longo pós-guerra.

A casa onde irão viver pertencia a outra família, cujos retratos ainda estavam pendurados nas paredes, o que incita em nós hipóteses de histórias trágicas não contadas. Essa economia de não ir ao fundo de tudo, traduzida na cadência acelerada do texto, define o estilo do livro.

Os desastres do novo velho mundo são captados pelos olhos de uma criança ágil e alegre, a quem o mundo material fora generoso e para quem a morte bruta existe como mera hipótese ou história —daí talvez seu fascínio pelos crimes estampados nos jornais. Que Chico tenha voltado a viver na Itália durante a ditadura civil-militar brasileira é uma informação que nos espreita enquanto lemos.

Como em toda memória de infância, há uma criança descobrindo o parque de aventuras do desejo. A iniciação ao erotismo é trespassada por nossas costumeiras diferenças de classe e raça. O livro põe em cena uma pré-adolescência à brasileira, com uma naturalidade faceira que irá chocar alguns, irritar outros, mas que representa de modo deliberadamente provocativo e honesto a experiência de muitos "bambinos" da sua mesma classe e geração.

Mas não é só isso, o menino é constantemente bulinado por um professor, em episódios narrados não em tom de regressão ao trauma mas com distanciamento irônico que tem efeito libertador. Esse jeito debochado de tratar assuntos medonhos tem algo de carioca e revela o adolescente narrador que também há em Chico.

Aquele garoto que se muda para Roma agarrado à bola de futebol não entende bem o motivo da drástica mudança da família. Indo um pouco aos fatos, porque reenviam ao literário: a estada dos Buarque de Holanda de 1953 a 1955 na Itália foi por um convite da Universidade de Roma para que o pai de Chico, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, assumisse naqueles anos a recém-criada cadeira de estudos brasileiros.

A ficção está impregnada pelo encontro do homem vivido com o menino que começa a experimentar o mundo —os heróis do ciclismo, balas de alcaçuz, cartas de amor, até uma sala de cinema com teto conversível. Mas, em vez de definir seu livro como memórias, Chico decidiu —marota ou machadianamente— pela estampa de ficção na capa.

Podemos endossar a proposta e dizer que sim, claro, são ficções de uma infância em Roma. Sobretudo porque o narrador vai se descolando de si, se desbragando, rindo do que conta, assim talvez se permitindo mais relaxadamente moldar a matéria do passado.

Talvez o intuito fosse alertar o comprador que o Chico Buarque autor, embora escrevendo a partir da história familiar, deseja ser lido como escritor literário, inventivo, cujo alvo não é a pessoa por trás do texto, mas o próprio tecido e tom da narração.

Assim evita ser consumido como um compositor que escreve sobre si, revelando eventuais segredos de família. Tudo isso é perfeitamente compreensível.

Mas, para citar um exemplo, lembre a obra de Natalia Ginzburg, que deriva quase inteira de suas memórias familiares e para quem o recordar encetava uma arte em si mesma. Não há nada no memorialismo que faça os autores menos literários ou meros compiladores de causos.

Por mais que leiamos "Bambino a Roma" como ficção, e ele também é isso, o belo livro de Chico não deixa de ser um relato de experiências, vividas efetivamente ou no ato criativo da escrita. Mas o mais importante: é um texto seguro sem ser artificioso, fluente sem ser afetado, telúrico sem ser banal. Uma pequena delícia, que traz por dentro uma foto do menino que nos espia de longe, de outro tempo.

Diria que foi no encontro entre suas memórias de garoto, seu tom de troça e o prumo do escritor —e leitor— experiente que Chico atingiu um de seus melhores momentos como narrador. Não há dúvida de que "Bambino a Roma" será exigido como leitura nas aulas de literatura brasileira da Universidade de Roma, levando-nos a visitar um século que agora vai ficando estranhamente distante.

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